TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
121 acórdão n.º 298/19 Saliente-se que, embora o recorrente sustente que tal interpretação é violadora de diversas normas cons- titucionais, nas alegações de recurso, em especial nas conclusões 1.ª, 2.ª, 4.ª, 9.ª, 15.ª, 16.ª, 27.ª, e 30.ª, centra a sua argumentação na violação dos direitos do arguido ao silêncio e à não autoincriminação – com diversas alusões ao Acórdão n.º 340/13 –, tendo sido também com referência ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare que a questão de constitucionalidade foi enquadrada quer na decisão ora recorrida, quer na sentença de primeira instância. Sem prejuízo da possibilidade de apreciar a norma em análise à luz de outros parâmetros constitucionais, justifica-se começar pelo indicado. Problemas que importa afrontar independentemente de saber se a proteção proporcionada pelo parâme- tro enunciado vale na mesma medida para os entes coletivos. 10. O princípio em causa implica o reconhecimento do direito ao silêncio e do direito do arguido à não autoincriminação enquanto elementos de um processo penal de estrutura acusatória. O primeiro daqueles direitos traduz-se na faculdade reconhecida ao arguido de não se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, diferentemente do que sucedia nos processos regidos pelo princípio do inquisitório em que as declarações obrigatórias do arguido, maxime a confissão forçada, tendem a convertê-lo em instrumento da sua própria condenação. O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de direito modernos, encontrando tam- bém consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cfr. o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). Já o segundo, entendido como direito a não contribuir para a própria incriminação, impede a transfor- mação do arguido em meio de prova por via de uma colaboração involuntária obtida com recurso a meios coercivos ou enganosos. Existe uma ligação íntima entre os dois direitos, desde logo porque, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação. Daí a correlação do nemo tenetur com a afirmação do arguido enquanto sujeito processual e, em particu- lar, com a sua liberdade de declaração, uma vez que é nesta última que se espelha o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual, decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se sobre os factos que lhe são imputados (cfr. o Acórdão n.º 304/04). De resto, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (“TEDH”) tem reconhecido que o direito à não autoin- criminação se relaciona, em primeira linha, com o respeito pela vontade do arguido em «permanecer em silêncio», em não prestar declarações (cfr., por exemplo, os acórdãos de 17 de dezembro de 1996, Saunders c . Reino Unido , Queixa n.º 19187/91, § 69; e de 21 de dezembro de 2000, Heaney and McGuinness c . Irlanda , Queixa n.º 34720/97, § 40). Com efeito, o núcleo essencial do nemo tenetur respeita a uma dimensão negativa da liberdade de decla- ração, com preponderante relevo no estatuto processual penal do arguido. Tal liberdade, na sua dimensão positiva, implica que «tenha de se garantir ao arguido a oportunidade efetiva de se pronunciar contra os factos que lhe são imputados, em ordem a infirmar as suspeitas ou acu- sações que lhe são dirigidas»; já na mencionada dimensão negativa, a liberdade de declaração protege o arguido contra o exercício de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração na autoincriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou a coação (cfr. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pp. 120 e seguintes). «[O] arguido não pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, a carrear ou ofe- recer meios de prova contra a sua defesa»; pelo contrário, é necessário garantir que «qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabi- lidade» (vide idem , ibidem , p. 121). O princípio do nemo tenetur visa, pois, assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo con- teúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e
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