TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

111 acórdão n.º 298/19 Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n. os 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte –, existe uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal, já que a referida documentação é relevante, não apenas para efeitos do processo de inspeção, podendo dar lugar à correção da situação tributária do contribuinte, mas também para efeitos do processo penal, enquanto prova da sua responsabilidade criminal. VIII - Numa situação como a dos presentes autos, em que está em causa a inspeção ao contribuinte reali- zada quando já corre contra ele um inquérito criminal tendo em vista a comprovação de factos que consubstanciam um crime fiscal, encontrando-se pendente o processo criminal, é no respetivo quadro que as respostas para a utilização no mesmo de documentos previamente obtidos ao abrigo do dever de colaboração têm de ser encontradas; com referência a tais documentos, a única questão a esclarecer é a de saber se os mesmos podem ser utilizados ou não. IX - Antes de instaurado o inquérito criminal, os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de colaboração podem ser aproveitados para instruir este último atendendo às razões justificativas da restrição do nemo tenetur ; depois de iniciado o processo criminal, o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo, já não se pode considerar meramente casual e justificado pela necessidade de prevenir qualquer imunidade; a sua única justificação residirá, então, apenas em preocupações de eficácia e de eficiência da própria perseguição criminal; e o desvio de fim tra­ duzido na utilização no processo penal de informações e material probatório recolhidos à margem das diligências de prova legalmente admitidas no quadro processual penal não pode deixar de estar presente ab initio , isto é desde que é exigida ao contribuinte a entrega dos documentos; tal desvio é inerente à própria admissibilidade da utilização desse material probatório no âmbito do processo penal tributário. X - A exigência de entrega de documentos é feita pela Administração fiscal num momento em que a mesma já desempenha um duplo papel, como inspeção tributária e como órgão de polícia criminal; utilizar no processo penal documentos obtidos coativamente do contribuinte por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significa transformar a colaboração do contribuinte num meio de obtenção de prova contra si próprio; a instrumentalização do dever de colaboração decorrente da utilização dos documentos para um fim diferente daquele para o qual foram entregues e, portanto, o abuso do mesmo dever, é patente. XI - Continuar a admitir a relevância do dever de colaboração, enquanto restrição ao nemo tenetur , para efeitos de legitimar a utilização no processo penal de meios de prova obtidos em razão do cumpri- mento de tal dever, criaria neste último processo um enorme desequilíbrio favorável à acusação e des- favorável ao arguido, comprometendo a possibilidade de autodeterminação deste na condução da sua defesa e, em última análise, a sua posição enquanto sujeito processual; nada justifica que o tratamento processual penal do contribuinte, que também seja suspeito ou arguido, possa ser mais desfavorável do que o tratamento de qualquer outro suspeito ou arguido; a colaboração exigível ao suspeito ou arguido num processo penal está limitada às diligências de prova admissíveis no quadro legal desse mesmo processo; no mais, a acusação tem de ser construída sem recurso a provas obtidas, com desrespeito da sua vontade, através da coação ou de meios de coerção utilizados contra aquele.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=