TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
439 acórdão n.º 104/19 somatório de antigas medidas processuais de coação a descontar em futuras condenações que obstariam ao cum- primento de penas que podiam até ser necessárias para a sua integração». 8. O recorrente, de resto, mostra-se ciente da existência de razões capazes de sustentar esta opção legis- lativa, quando refere, parafraseando o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de Fixação de Juris- prudência acima mencionado, que o «fundamento basilar» de tal opção «se prende com um desincentivo à reincidência ou reiteração de condutas ilícitas em virtude da existência de “um banco de horas” de prisão preventiva que possa vir a ser levado a desconto numa futura condenação». É portanto o próprio recorrente quem aduz argumentos capazes de suportar a conclusão de que a restrição efetuada no artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, promove legítimas finalidades do ordenamento jurídico-penal português, desde logo a pro- teção de bens jurídicos a que o n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal – preceito central deste ordenamento – subordina a aplicação de reações criminais por parte do Estado. O recorrente argumenta que aquela restrição da aplicação do instituto do desconto é «desproporcional relativamente à violação ao seu direito à liberdade, que foi injustificadamente coartado a coberto de uma decisão judicial proferido num processo que culminou com a sua absolvição». Esta afirmação encerra uma premissa falaciosa, qual seja a de que a circunstância de o arguido vir a ser absolvido torna necessariamente «injustificada» a coartação de liberdade a que o mesmo foi sujeito em virtude da aplicação, nesse processo culminado em absolvição, de determinadas medidas processuais. Como é sabido, a aplicação de medidas como a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação funda-se em finalidades de natureza cautelar. É certo que a aplicação de tais medidas é limitada a casos em que haja fortes indícios de responsabi- lidade penal por parte do arguido (cfr. os artigos 201.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). No entanto, a sua legitimidade não pressupõe que esta responsabilidade venha a ser confirmada por uma decisão condenatória. Daí que o Estado não seja responsabilizável pela aplicação de medidas privativas da liberdade sempre que não venha a haver condenação (vide o artigo 225.º do Código de Processo Penal e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 185/10). Por outro lado, a aplicação das medidas de coação acima referidas está já, ela própria, através de inúmeros requisitos fixados na lei, subordinada ao princípio da pro- porcionalidade, nas suas três vertentes (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito): cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pp. 137 e seguintes. 9. Por razões idênticas às que acabam de se expor, a restrição operada pela parte final do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal também não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constitui- ção. Quanto a este parâmetro constitucional, entende fundamentalmente o recorrente que «o pressuposto de partida igual para todas as situações que possam vir a ser eventualmente sujeitas a desconto» é «que o arguido tenha cumprido pena de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação num processo que termine sem uma condenação», sendo que «o pressuposto da anterioridade do facto – perfilhado no artigo 80.º do CP – materializa uma positivação legal que se traduz num tratamento desigual, arbitrário e injusti- ficado por parte do legislador para situações iguais». Ora, o entendimento reiteradamente expresso pelo Tribunal Constitucional quanto a este princípio é também o de que é primacialmente ao legislador que incumbe avaliar a existência de especificidades juridica- mente relevantes entre distintos conjuntos de situações, sendo-lhe permitido, quando conclua pela existência de tais especificidades, estabelecer diferenciações de regime que as reflitam. Tais diferenciações expor-se-ão a um juízo de constitucionalidade se, mas apenas se, se mostrarem discriminatórias, infundadas, desrazoáveis, insuscetíveis de justificação objetiva e racional – numa palavra, arbitrárias (cfr. o Acórdão do Tribunal Cons- titucional n.º 166/10, com ulteriores referências). Se o são ou não é a única questão que ao Tribunal Cons- titucional incumbe apreciar, não lhe cabendo já apreciar se melhores soluções poderiam ter sido adotadas. Tendo já acima ficado estabelecido que a diferenciação feita no artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, é suscetível de ser justificada com base argumentos racionais de natureza político-criminal, não pode a mesma, desse mesmo passo, apresentar a arbitrariedade proibida pelo princípio da igualdade. É nessa linha que o já
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