TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
423 acórdão n.º 90/19 De acordo com o que vem relatado no próprio acórdão, na situação de facto que ocupou o tribunal recorrido, à promessa da vantagem seguiu-se a materialização da entrega da vantagem. Foi tendo em con- sideração esta situação de facto que o tribunal a quo, socorrendo-se da distinção feita por Jescheck entre o conceito de «consumação material ou terminação» e o conceito de «consumação formal», concluiu, que «o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, em situações como a ocorrente nos autos, a consumação material do crime ou terminação». Em sentido divergente sustenta a maioria que, prescindindo o tipo incriminador da entrega da vantagem para a consumação do crime, é do momento da promessa da vantagem que a prescrição deve começar a correr, mesmo no caso de à promessa da vantagem se seguir a efetiva entrega. Trata-se de um entendimento ampla- mente suportado pela doutrina, como também se dá nota na fundamentação do acórdão. Tem, portanto, apoio doutrinário a interpretação dos preceitos em causa num sentido contrário ao adotado no tribunal recorrido. Tal não permite, porém, afirmar que a interpretação aplicada não encontra expressão na letra da lei. Na verdade, ao sustentar uma tal conclusão, a decisão confunde o plano do controlo de constitucionalidade com o da errónea aplicação do direito infraconstitucional, infletindo entendimento de há muito pacífico na jurisprudência do Tribunal, segundo o qual «o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efetuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade» (vide entre outros, Acórdãos n. os 674/99, 524/07 e 183/08). 4. De acordo com o artigo 221.º da Constituição, o Tribunal Constitucional é «o tribunal ao qual com- pete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional». A vocação funcional de um tribunal com competência específica para administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais é a apreciação da constitucionalidade de normas (ou interpretações normativas). Saber se determinada interpretação normativa é conforme à Constituição não se confunde, porém, com a determinação e interpretação do direito ordinário aplicável ao caso. O Tribunal não pode incorrer nessa confusão, sob pena de se apropriar do controlo da interpretação de todas as normas inseridas em áreas do Direito limitadas pelo princípio da tipicidade, já que é sempre possível divergir da interpretação dada a uma norma legislativa. Foi o que se passou na presente decisão. Ora, o percurso argumentativo percorrido pelo acórdão evidencia que, para concluir que a interpretação normativa dos artigos 119.º, n.º 1, e 374.º do CP adotada pelo tribunal a quo violava o princípio da legali- dade penal consagrado no artigo 29.º da Constituição, a maioria teve – em momento prévio – de acordar na determinação de qual o sentido que considera ser o «correto» dos conceitos usados pelo legislador infracons- titucional naqueles preceitos legais. Ao decidir esta questão do modo como decidiu, a maioria sobrepôs o seu entendimento dos factos e do Direito ao adotado no tribunal recorrido. Agiu como se o Tribunal Constitu- cional tivesse competência qualificada em matéria de interpretação da lei ordinária, esvaziando totalmente a competência dos tribunais judiciais de interpretação do direito infraconstitucional. Desta forma desfigurou a sua função no quadro da repartição de competências entre tribunais, designa- damente entre o Tribunal Constitucional e as demais ordens jurisdicionais, transformando-se numa «quarta instância», que não se enquadra nas competências próprias que a Constituição lhe reserva. Não cabe ao Tribunal Constitucional definir qual a interpretação do direito ordinário que deve ser seguida pelas ordens jurisdicionais competentes. A competência específica do Tribunal Constitucional é a interpretação da Constituição. Pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito ordinário. 5. O desvirtuamento das funções do Tribunal Constitucional, para além de violar o princípio da con- formidade funcional das competências do Tribunal Constitucional, tem um efeito expansivo que não pode ser encorajado. A confusão entre o controlo da conformidade constitucional das normas aplicadas e o con- tencioso de decisões judiciais pretensamente violadoras da Lei Fundamental, alimenta o recurso à jurisdição
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