TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
416 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL cidadãos fica assim garantida perante intervenções estaduais que não se contenham dentro de um círculo de atuação estritamente delimitado» (Acórdão n.º 76/16). Certo é que o princípio da legalidade criminal, para além da exigência de lei certa, obriga que as normas e interpretações normativas adotadas tenham correspondência com a letra da lei que define os pressupostos da responsabilidade penal do indivíduo. Neste sentido, importa realçar o afirmado por este Tribunal no Acórdão n.º 183/08: «Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico- -normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totali- tários do século XX (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral , I, p. 178). Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade ( nullum crimen sine lege certa ). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justi- ficam o poder punitivo. Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial. O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo. Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido. (…) A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível − uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político‑criminais que justifi- cam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)». 35. Ora, esta “barreira intransponível” ao processo hermenêutico que tenha por objeto a lei penal, nomeadamente no plano da exigência de lei prévia, estrita e escrita, é garantida pela Lei Fundamental ao abrigo do princípio da legalidade criminal, cabendo ao Tribunal Constitucional sindicar interpretações nor- mativas que ultrapassem o permitido pela letra da lei penal ou sem correspondência com o prescrito nos enunciados normativos criminalizantes. 36. Como reiterado pela jurisprudência deste Tribunal, cabe, ao abrigo do princípio da legalidade crimi- nal, verificar se a norma ou interpretação normativa em escrutínio ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as suas consequências jurídicas. Exige o princípio da legali- dade criminal que o resultado do processo interpretativo do respetivo texto legislativo penal não caia fora do quadro das significações possíveis da letra da lei.
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