TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
382 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Esta especificidade não pode deixar de conferir ao direito em causa uma intensidade que, não sendo idên- tica ao sentimento de pertença conferido ao filho pela possibilidade, garantida pelo correspondente direito à identidade pessoal, de encontrar o seu lugar numa determinada cadeia de parentesco, tem também uma carga valorativa ponderosa. Com efeito, a condição de pai, só por si, potencia, ou pode potenciar, um senti- mento de vida em relação que confere ao pai biológico idêntico sentido de posicionamento relativo, um lugar no espaço inter-subjetivo único das relações familiares, enfim, uma (nova) família e um comprometimento futuro com o filho, cujos efeitos conformam, ainda que prospetivamente, a sua identidade atual. Por outro lado, não sendo legalmente possível o estabelecimento da paternidade do pai biológico por perfilhação enquanto vigorar no registo do nascimento do filho a menção da paternidade presumida do marido da mãe, também a impugnação da paternidade, tal como sucede quando deduzida pelo filho, cons- titui para o progenitor um meio processual indispensável à efetivação do direito fundamental que lhe assiste de ver reconhecida a sua paternidade e estabelecer com o filho uma relação pessoal e afetiva reconhecida, garantida e promovida pelo Direito. Apesar disso, as normas dos artigos 1838.º, 1839.º, n.º 1, e 1841.º do CC, na interpretação sindicada, não conferem ao pretenso progenitor legitimidade ex novo para fazer valer esses seus direitos, obrigando-o, em vez disso, a intervir processualmente através do Ministério Público e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido. Será que, desse modo, se restringe intoleravelmente o direito de acesso aos tribunais do pretenso proge- nitor e, indiretamente, os próprios direitos fundamentais de natureza substantiva que lhe assistem, como o direito de constituir família e o direito à identidade pessoal, com os conteúdos acima delimitados? Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 20.º da Constituição, o direito de ação ou de acesso aos tribunais traduz-se no «direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhe- cimento do juiz, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada (direito à decisão) (…)» (Consti- tuição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pp. 414-415). De acordo com o do n.º 1 artigo 1841.º do CC, aquele que se declara pai do filho tem o direito de requerer que a ação de impugnação de paternidade presumida seja proposta pelo Ministério Público, uma vez reconhecida a viabilidade da ação. Assiste-lhe, pois, o poder de impulsionar a instauração da ação de impugnação da paternidade cuja procedência permitirá assegurar a satisfação dos seus direitos substantivos, designadamente o de perfilhar e estabelecer por esse meio a paternidade, o que, por sua vez, viabilizará o exercício de todos os direitos e responsabilidades que integram o conteúdo próprio das responsabilidades parentais. Ora, a simples circunstância de a lei exigir a intervenção mediadora do Ministério Público, não con- ferindo ao pretenso progenitor a possibilidade de instaurar por si próprio a ação de impugnação da pater- nidade, não impede que a sua pretensão, a de ver ilidida a presunção legal de paternidade, seja apreciada e decidida pelos tribunais, como a Constituição impõe e garante no seu artigo 20.º Não tem, pois, razão o recorrente quando afirma que a lei, ao negar àquele que alega ser pai biológico legitimidade para intentar a ação de impugnação da paternidade do marido da mãe, impede-o de conhecer a identidade do filho e ver reconhecido o vínculo jurídico de filiação. Vindo a ser proferida decisão de viabilidade da ação de impugnação de paternidade, a lei admite a sua instauração, ainda que por intermédio do Ministério Público, opção que não inviabiliza o direito de acesso aos tribunais, como acima demonstrado, nem os direitos fundamentais cuja tutela jurisdicional efetiva se reclama. Na verdade, perspetivando-se a solução normativa à luz dos direitos fundamentais do pretenso progenitor, verifica-se que há na ponderação do legislador, apesar dessa mediação processual, uma clara pre- valência do valor da verdade biológica sobre o valor da estabilidade da família conjugal, pois que se reconhece àquele o poder de desencadear ou impulsionar a instauração de uma ação cuja procedência determinará o cancelamento do registo da paternidade presumida e viabilizará o estabelecimento da paternidade efetiva,
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