TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

381 acórdão n.º 89/19 Ora, nenhum dos direitos fundamentais invocados pelo recorrente é privativo daqueles que têm entre si uma relação biológica de filiação, nem assume maior peso em relação aos titulares desta relação. É, pois, neste pressuposto jurídico-constitucional de igualação que se deve analisar o objeto do presente recurso. A esta luz, o plano da discussão situa-se apenas ao nível da titularidade e compatibilização de direitos funda- mentais, mormente do direito à identidade pessoal e do direito de constituir família, direitos que assistem a todos os cidadãos por igual e que estão sujeitos às limitações inerentes à condição pluridimensional das relações familiares, próprias e alheias, em que se projetam, independentemente da causa que esteve na origem do estabelecimento dessas relações. 7. Feita esta advertência de cariz metodológico, comecemos por analisar o problema de inconstitucio- nalidade, objeto do presente recurso, à luz dos invocados parâmetros constitucionais, o direito de constituir família (artigo 36.º) e o direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1). Não merece dúvida que o direito de constituir família, consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da Cons- tituição, integra, ainda que não exclusivamente, o direito de procriar e de ver reconhecido pelo Direito os vínculos jurídicos que ligam o progenitor ao filho. Trata-se de uma manifestação do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, que, no caso, se concretiza na livre opção de ter filhos, com projeção irre- cusável na identidade do progenitor, que passa a integrar, não apenas o património histórico-individual das suas próprias origens genéticas e vivências pessoais passadas, mas uma nova dimensão constituinte traduzida na qualidade única e irrepetível de pai ou mãe do novo ser humano gerado. Situamo-nos, pois, numa zona de confluência normativa, que decorre do exercício de direitos funda- mentais e gera simultaneamente novos direitos fundamentais, sendo que todos eles concorrem cumulativa- mente para a proteção constitucional, a montante e a juzante, da esfera jurídica dos progenitores. Com efeito, a procriação, sendo um facto biológico constitutivo de direitos fundamentais dos pais em relação aos filhos (e destes em relação aos pais), que o Estado deve garantir e promover ativamente, criando condições jurídicas, económicas e sociais que promovam a sua efetivação plena (artigos 36.º, n. os 5 e 6, pri- meira parte, 67.º, 68.º e 69.º da Constituição), é também, ela própria, resultado de um exercício de liberdade no desenvolvimento e conformação da personalidade dos progenitores e, simultaneamente, fonte de uma nova componente de identidade pessoal, que se baseia precisamente na qualidade relacional essencial de ambos os sujeitos da relação biológica da filiação – a dos pais, que somaram àquilo que são uma nova refe- rência identitária, que não pode deixar de ser protegida pelo direito à identidade pessoal, e a dos filhos, cuja existência e consciência individuais são necessariamente modeladas pelas suas origens genéticas, em termos que, como tem sido unanimemente reconhecido, reclamam tal proteção constitucional (artigo 26.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental). Nesta perspetiva dinâmica, o direito à identidade pessoal acompanha o que o seu titular, no exercício do direito ao livre desenvolvimento da personalidade – um e outro constitucionalmente consagrados (artigo 26.º, n.º 1) – vai progressivamente acrescentando à pessoa que é, ampliando-se o objeto de proteção em função das escolhas individuais livremente feitas por cada cidadão ao longo da sua vida, designadamente no plano pessoal e familiar. Afigura-se que só nesse modo de ver pode o Direito Constitucional refletir e prote- ger a identidade de cada pessoa, que é por natureza um ser em devir; não um produto estático do seu passado. Assim sendo, é de reconhecer que o direito à identidade pessoal, que o n.º 1 do artigo 26.º da Cons- tituição consagra, não inclui no seu seio de proteção apenas o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores; sendo a paternidade e/ou maternidade uma componente essencial da identidade da pessoa humana, que a autonomia da personalidade física e jurídica dos filhos não descaracteriza, não pode deixar de se considerar também integrado no âmbito de tutela desse mesmo direito fundamental, em correspetividade, o próprio direito ao conhecimento da identidade dos filhos biológicos. Considerando que o pai biológico não tem, por força da natureza das coisas, um conhecimento direto ou imediato da qualidade de pai, o direito à identidade pessoal inclui, no caso, desde logo, o direito do homem a saber se é pai do filho gerado pela mulher com quem manteve relações sexuais no período legal da conceção.

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