TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

380 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1), o (seu) direito fundamental de constituir família (artigo 36.º), o (seu) direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º), e, bem assim, o princípio da igualdade (artigo 13.º) e o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º), todos da Constituição. Nas suas alegações, começa por esclarecer que, ao intentar a ação que deu origem ao presente recurso, apenas pretende ver «apurada a verdade da sua filiação em relação ao réu D.», condição de que depende, a confirmar-se que é pai do menor em causa, como é sua firme convicção, o exercício dos poderes/deveres que emergem dessa qualidade biológica ainda em tempo, isto é, durante a infância e a adolescência deste último. No seu entender, «não será justo sujeitar o menor a viver toda a sua infância e adolescência num ambiente familiar assente em mentiras só porque a mãe deste e o presumido pai mantêm o propósito de negar a ver- dade». Uma tal pretensão, defende, é objeto de expressa tutela constitucional, pois que, «assim como o filho tem direito a conhecer a sua ascendência biológica, também o pai biológico tem ‘direito à identidade pes- soal’, no qual se insere o «direito ao conhecimento da descendência biológica’, ou seja, o direito ao conheci- mento da identidade dos filhos (art. 26.º n.º 1 da CRP)». Argumenta, ainda, o recorrente que o «direito de constituir família», que o artigo 36.º da mesma Lei Fundamental consagra, inclui na sua esfera de tutela «o direito a procriar» e o «direito a estabelecer as cor- respondentes relações de paternidade», impondo-se ao legislador, em ordem à sua satisfação, que «organize os meios para impugnar e estabelecer juridicamente os vínculos da filiação» concordantes com a filiação biológica. Ainda com atinência a este último parâmetro, sustenta o recorrente que a opção legal de afastar a legitimidade processual do pai biológico, ou daquele que se declara como tal, para intentar ação que lhe permita impugnar a paternidade do marido da mãe e ver reconhecido o seu estatuto jurídico de pai viola o «direito fundamental do pai e mãe biológicos não serem privados dos filhos» (artigo 36.º, n.º 6, da CRP). Nesta linha de argumentação, conclui o recorrente que, «na sociedade em que vivemos, o vínculo da filiação deve assentar na verdade biológica, devendo prevalecer sobre tal monopólio e sobre quaisquer princí- pios, tais como o da segurança jurídica, estabilidade familiar e matrimonial, ou qualquer outro que possa ser invocado», não sendo constitucionalmente aceitável que «[a] eventual protecção da família constituída (dos Réus) [se sobreponha], de forma cega, muito menos absoluta, à protecção da família a constituir (do Autor e do seu filho biológico)». Deve sublinhar-se, antes de mais, que o pressuposto de que parte o recorrente, o da prevalência da ver- dade biológica sobre quaisquer outros princípios ou direitos, não tem tradução constitucional. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, em jurisprudência consolidada, o princípio da ver- dade biológica, sendo «um critério estruturante do regime legal, não assume dignidade constitucional», não podendo, por si só, fundamentar um juízo de inconstitucionalidade relativamente a normas que possam interferir com a sua aplicação (Acórdão n.º 589/07). Por isso, não é possível estabelecer em abstrato qualquer hierarquia de direitos e valores e, muito menos, fazê-lo por aplicação de critérios baseados exclusivamente no facto biológico da procriação, como parece defender o recorrente. Como expressivamente decorre da jurisprudência atrás analisada, as relações familiares e, em particular, as relações de filiação, assumem especiais características pessoais e pluridimensionais que tornam inviável qualquer perspetiva individualizada ou bilateral da relação jurídica que existe – ou que se pretender ver estabelecida – entre pai e filho. Com efeito, o estabelecimento e a extinção de vínculos jurídicos de filiação projetam-se de forma intensa, não apenas na esfera jurídica dos respetivos sujeitos (pai e filho e/ou mãe e filho), mas também no plano alargado das relações familiares estabelecidas por cada um deles com pessoas que, sendo terceiros à relação de filiação em discussão, integram ou fazem parte da sua família direta. No domínio específico da impugnação da paternidade presumida do marido da mãe, a pretendida recomposição das relações jurídicas em conformidade com a verdade biológica provoca alterações de posicio- namento relativo dos membros da família constituída, em que se incluem, não apenas o marido da mãe, a mãe e o filho, mas também toda a complexa cadeia de parentesco que, partindo desse núcleo central, os liga numa referência familiar global e única.

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