TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

376 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL para impugnar vínculos jurídicos de paternidade contrários à verdade biológica, defende-se no mesmo aresto que aqueles direitos não têm a «mesma carga valorativa» quando acionados pelo filho com vista ao reconhe- cimento da paternidade e quando acionados pelo presumido pai para excluir a sua paternidade: «[a] ação de reconhecimento judicial da paternidade visa a constituição de um vínculo sem o qual resulta nuclearmente afectado o conteúdo identitário da individualidade do investigante, por falta de um elemento basilar da sua conformação. Já com a ação de impugnação da paternidade pretende-se a destruição de um vínculo estabele- cido, formado por presunção legal, assente num juízo de probabilidade. A preclusão, pelo decurso do prazo, do direito de intentar a ação não tem, neste caso, o mesmo significado para a esfera pessoal do interessado, a mesma projecção radicalmente empobrecedora da personalidade». Depois de invocar, na linha do citado Acórdão n.º 589/07, a existência de razões específicas justifi- cativas da consagração de um prazo de caducidade para o exercício do direito de impugnar a paternidade, relacionadas com a proteção da família conjugal, o Acórdão n.º 446/10, que vimos acompanhando, apela para uma outra ordem de ponderações, que se não prendem já com os «interesses gerais ou valores de orga- nização social, em torno da instituição familiar», mas com «as posições subjectivas em jogo», em particular com «o eventual interesse daquele que é tido como filho em manter esse estatuto». A este respeito sublinha-se o seguinte: «Sobretudo quando o vínculo jurídico tem tradução consistente no ‘mundo da vida’ familiar e social, gerando, como é normal, laços afectivos, a destruição retrospectiva desse vínculo acarreta (ou agrava) a perda de sentido de uma componente nuclear da memória e da historicidade pessoais, da auto-representação de si, por parte de quem é filho. (…) Outros factores de identidade pessoal podem, [pois], sobrepor-se, na óptica do filho, aos de ordem genética, não podendo ser dado por seguro que o seu interesse, mesmo excluindo dimensões patrimoniais, corresponda sempre à coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico. Este interesse, quando exista, é, aliás, susceptível de ser autonomamente exercitado, pois ao filho é reconhe- cida legitimidade própria para impugnar [alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º]». Ora, foi essencialmente por considerar, pelas razões acima explicitadas, que não existe um «coincidência perfeita das coordenadas valorativas a ponderar e do grau da sua incidência em cada uma das situações», que este último acórdão concluiu não ser de transpor para a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1848.º do CC, aí em discussão, os fundamentos do Acórdão n.º 23/06, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante. Por isso, tal como o Acórdão n.º 589/07 havia feito em relação ao artigo 1848.º, n.º 1, alínea a) , do CC, na redação original, e, depois dele, os Acórdãos n. os 593/09 e 179/10, quanto à mesma norma, mas na redação introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, também o Acórdão n.º 446/10 julgou não incons- titucional o citado preceito legal, que nesta última redação passou a estabelecer que a ação da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, jurisprudência que veio a ser reiterada, sem desvios, nos Acórdãos n. os 39/11, 449/11, 634/11 e 274/13. Em idêntico sentido decidiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 441/13, quando chamado a apreciar a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 1848.º do CC, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2009, segundo a qual a mãe pode intentar a ação de impugnação da paternidade dentro dos três anos posteriores ao nascimento. Tal como os citados acórdãos reconheceram que assiste ao presumido pai o direito próprio de «excluir, como facto de conformador da identidade própria, aquilo que não é», pai da pessoa que a lei presume ser seu filho biológico, dimensão julgada incluída no âmbito de proteção do direito fundamental à identidade pes- soal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), também o Acórdão n.º 441/13 defendeu que a mãe tem o direito «a ver juridicamente (e também socialmente) reconhecido que não é pai do filho, nascido e concebido na constância do matrimónio, quem a lei presume (artigo 1826.º, n.º 1, do CC), direito que se traduz num «direito à verdade pessoal», também postulado e protegido pelo direito fundamental à identidade pessoal consagrado na citada norma constitucional.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=