TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
374 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A presunção de paternidade que o recorrente pretende ilidir, alegando a qualidade de pai biológico do réu D., está expressamente consagrada no n.º 1 do artigo 1826.º do CC, que determina: «Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe». Essa presunção legal decorre, como a generalidade das presunções legais, de uma regra de normalidade ou de experiência comum, que não é alheia, no caso, à forma como o próprio sistema normativo regula a relação pessoal entre os cônjuges, sujeitando-os reciprocamente aos deveres de coabitação e fidelidade (artigo 1672.º do CC). Partindo do princípio da observância desses deveres jurídicos, enuncia o legislador a regra, que a experiência revela e comprova, de que os filhos nascidos ou concebidos na constância do matrimónio da mãe são fruto das relações sexuais desta com o seu cônjuge. As presunções legais, em cuja categoria normativa se insere a presunção de paternidade, são as ilações que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do CC). No caso da presunção de paternidade, a lei extrai do facto do nascimento ou conceção do filho na constância do matri- mónio da mãe, que é um dado de facto seguro e objetivo, a ilação (demonstração) de que o filho tem como pai (biológico) o marido da mãe. Fá-lo por razões que essencialmente se prendem com a constatação de que é isso que sucede na generalidade das situações, assumindo a lei como princípio de prova com relevância extrajudicial o que materialmente corresponde a um juízo de probabilidade ou normalidade social. Como é sabido, o facto jurídico da paternidade, que decorre do funcionamento da referida presun- ção legal, determina a constituição da relação jurídica de filiação entre pai e filho, que é integrada por um complexo de direitos e deveres que assentam numa ideia fundamental de entreajuda: pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º do CC), competindo especialmente àqueles, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes últimos, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens, até que os mesmos atinjam a maioridade ou emancipação (artigo 1878.º, n.º 1, do CC). A lei reconhece, contudo, que o facto (presumido) da paternidade do marido da mãe pode não ter correspondência com a realidade biológica. Por isso, admite a impugnação desse facto mediante a prova de que a paternidade do marido da mãe é, de acordo com as circunstâncias, manifestamente improvável (artigo 1839.º, n.º 2, do CC). Não o faz, contudo, em regime de total abertura. Com efeito, ponderando que o vínculo jurídico que une pai e filho, no contexto de uma família cons- tituída por meio do casamento – única hipótese que está em causa nas referidas normas legais –, tem nor- malmente subjacente uma relação sócio-afetiva que se apresenta, por si só, como um valor merecedor de proteção jurídica, quer no plano dos interesses individuais de cada um dos membros da família, quer no plano institucional e comunitário, a lei regula cuidadosamente a ação de impugnação da paternidade, cuja procedência tem o grave efeito de extinguir o descrito vínculo jurídico e afetar a estrutura familiar subja- cente, que lhe dá razão de ser e sentido. Contrariamente ao que sucede com o estabelecimento da paternidade presumida do marido da mãe, que, como vimos, assenta basicamente em regras de experiência comum ou juízos de probabilidade, o regime jurídico da impugnação desse facto presumido decorre já, em determinados aspetos centrais, da ponderação de valores potencialmente conflituantes, como o da verdade biológica, por um lado, e o da estabilidade e pre- servação da família constituída, por outro, encerrando uma opção legislativa de fundo quanto a essa matéria. São dois os traços jurídicos gerais que, evidenciando o sublinhado cuidado normativo e as preocu- pações substanciais que o justificam, acima afloradas, modelam o regime legal da ação da impugnação de paternidade presumida do marido da mãe: o da legitimidade processual ativa, por um lado, e o do prazo de caducidade, por outro. Em relação ao primeiro aspeto, que se controverte no presente recurso, a lei efetivamente confere o direito de ação apenas ao marido da mãe, a esta e ao filho (artigos 1838.º e 1839.º, n.º 1, do mesmo Código), impedindo a intervenção processual direta daquele que, apesar de invocar a qualidade de pai biológico,
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