TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
366 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL IV - A simples circunstância de a lei, no n.º 1 artigo 1841.º do Código Civil, exigir a intervenção media- dora do Ministério Público, não conferindo ao pretenso progenitor a possibilidade de instaurar por si próprio a ação de impugnação da paternidade, não impede que a sua pretensão, a de ver ilidida a presunção legal de paternidade, seja apreciada e decidida pelos tribunais, como a Constituição impõe e garante no seu artigo 20.º, não tendo razão o recorrente quando afirma que a lei, ao negar àquele que alega ser pai biológico legitimidade para intentar a ação de impugnação da paternidade do marido da mãe, impede-o de conhecer a identidade do filho e ver reconhecido o vínculo jurídico de filiação. V - Perspetivando-se a solução normativa à luz dos direitos fundamentais do pretenso progenitor, verifica- -se que há na ponderação do legislador, apesar dessa mediação processual, uma clara prevalência do valor da verdade biológica sobre o valor da estabilidade da família conjugal, pois que se reconhece àquele o poder de desencadear ou impulsionar a instauração de uma ação cuja procedência determi- nará o cancelamento do registo da paternidade presumida e viabilizará o estabelecimento da paterni- dade efetiva, seja por via da perfilhação, seja por via da investigação oficiosa da paternidade – mesmo contra a vontade dos membros da família constituída e os interesses de integridade familiar que se lhe pudessem opor. VI - O regime estabelecido no n.º 2 do artigo 1841.º – que não integra o objeto do presente recurso – visa precisamente assegurar que a relação sócio-afetiva da filiação se forme e desenvolva desde o prin- cípio com o efetivo progenitor e não com aquele que a lei presume como tal; o que a lei não quer é a interferência perturbadora de terceiros no seio de uma família constituída sem que haja séria razão justificativa para tal, e por isso, apenas confere legitimidade processual direta aos membros da família, permitindo-lhes pôr termo a uma relação jurídica em que estão diretamente envolvidos, e condiciona a intervenção daquele que se arroga a qualidade de pai biológico à mediação processual do Ministério Público e a um controlo prévio de viabilidade da ação a intentar por este último, por impulso daquele. VII - O impacto restritivo que decorre dessa solução normativa para a esfera jurídico-constitucional do pretenso progenitor encontra justificação na defesa da integridade e estabilidade da família constituída e nos mesmos direitos fundamentais que o recorrente invoca para legitimar, no plano constitucional, a possibilidade de intentar diretamente e sem controlo prévio de viabilidade a ação que visa destruir o vínculo jurídico da filiação entre o filho e o presumido pai, valendo aqui de pleno as razões pelas quais o Tribunal Constitucional, em Acórdãos anteriores, não julgou inconstitucionais as restrições decorrentes do estabelecimento dos prazos de caducidade vigentes para a impugnação da paternidade presumida. VIII - Se é certo que assiste ao pretenso progenitor o direito fundamental de ver reconhecido e estabelecido o vínculo jurídico de filiação e de constituir uma família, a verdade é que, no polo oposto, existe já uma família concreta em que o alegado filho biológico está inserido e donde recolhe a sua base e referência de apoio; é para defesa da estabilidade deste núcleo familiar concreto, e não de valores abstratos de segurança jurídica, que a lei impõe a existência de um reconhecimento prévio de viabilidade da ação de impugnação e reserva a instauração desta última ao Ministério Público.
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