TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

187 acórdão n.º 20/19 jurídico-penal. Veja-se por exemplo Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Envenenamento e ofensas corporais por substâncias nocivas à saúde”, in Scientia Ivridica, Tomo X (1961), p. 424, reconduzindo já a razão de ser deste tipo agravado de homicídio ao «modo insidioso da sua perpetração». Independentemente disso, o elemento «utilizar veneno», não estando dispensado de interpretação (como nenhum está), é decerto sufi- cientemente determinado para que pudessem lançar-se dúvidas sérias sobre a sua constitucionalidade. Assim sendo, a previsão conjunta, na norma em análise, do conceito de «veneno» com o de «outro meio insidioso» estreita ainda mais o possível campo de significação do segundo, constituindo o primeiro – poderia até dizer-se, embora de modo mais figurado do que rigoroso – como que um seu exemplo-padrão. Quer dizer, um exemplo indiciador de um conceito que, de acordo com a análise até aqui feita, se podia já considerar, prima facie , suficientemente determinado para poder desempenhar sozinho o papel de tipo indi- ciador da cláusula geral da «especial censurabilidade ou perversidade». Mais sinteticamente: como que um exemplo-padrão de um exemplo-padrão. 14. Voltando à questão da não incompatibilidade necessária entre elementos normativos e/ou técni- cos e o princípio da tipicidade, cumpre notar o seguinte relativamente ao ponto mínimo de determinação exigido por aquele princípio: ao aceitar-se que os tipos legais de crime podem, e mesmo devem, fazer uso de tais elementos, está-se necessariamente a aceitar que a sua suficiente determinação dependerá também de eles proporcionarem aos tribunais um quadro suficientemente recortado para que estes, no exercício de uma atividade interpretativa que atenda – aqui sim já inquestionavelmente – a outros elementos da norma penal para além do literal (mas sempre sem o perder de vista), possam fazer, ainda e sempre, um exercício de aplicação do direito e não já de criação de direito. Além de isso ainda ser imposto pelo princípio da tipici- dade na sua dimensão (até aqui sobretudo focada) de direta e imediata garantia dos cidadãos, pois de outro modo estes não poderiam saber o que esperar da lei, avulta agora com maior intensidade a sua dimensão de concretização do princípio da separação de poderes (cfr. António Castanheira Neves, “O princípio…”, op. cit. , p. 380, José de Sousa e Brito, op. cit. , pp. 243 e seguintes, Teresa Serra, op. cit. , pp. 126 e seguintes; cfr. também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/99). Só que também neste plano não sobram muitas dúvidas sobre a suficiente determinação do elemento típico em análise. É uma vez mais das próprias referências indicadas pelo recorrente – embora destinadas a contestar a concreta atividade subsuntiva efetuada pelos tribunais em casos diversos – que decorre estar-se perante um conceito capaz de oferecer aos tribunais um quadro operativo com as características indicadas: o recorrente reconhece que a teleologia da qualificação do homicídio em razão da natureza insidiosa do meio utilizado assenta essencialmente no facto de essa espécie de meio «impossibilita[r] a defesa da vítima, por desconhecimento de que contra si estivesse a ser desencadeado processo tendente à lesão da vida», «torná[-la] extremamente difícil, muito difícil, ou mais difícil», «dificultando a sua capacidade de reação/defesa contra um ataque homicida»; que um meio insidioso não será um «meio usual para causar a morte, mas antes um meio inusual que, como tal, surpreendesse a vítima». É, pois, paradoxal relativamente à sua própria exposi- ção a conclusão por si tirada pouco depois, de que «não [é] compatível com o princípio da legalidade penal a utilização de um conceito tão vago para fundar a responsabilidade criminal do agente, que permite um alargamento interpretativo de tal modo vasto, que no “meio insidioso” possam caber toda a sorte de formas, processos, condutas, comportamentos ou meios com aptidão para matar – perigo que sempre resulta da utilização de um conceito indeterminado como este». Há – pode mesmo considerar-se – praticamente um consenso na comunidade jurídica sobre a teleologia deste fundamento de qualificação. Não só há consenso, como o objeto desse consenso é bastante bem defi- nido, podendo condensar-se na noção de que a utilização de meios de caráter insidioso praticamente impos- sibilita a vítima de esboçar uma defesa (vide Jorge de Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. cit. , p. 69, com indicação de ulterior doutrina e jurisprudência no mesmo sentido, e detalhando ainda mais o fundamento desta qualificação: reconduz-se o mesmo a «um aproveitamento consciente pelo agente da ingenuidade e da incapacidade de defesa da vítima no momento do início da execução»).

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