TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
186 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL No entanto, «insídia» não é, desde logo, um significante polissémico. Antes aponta para um conjunto de significados bastante bem recortados e que, ademais, não se expõem a particulares oscilações contextuais: com a adjetivação de uma ação como «insidiosa» quer-se sempre – ou, pelo menos, numa fração esmagadora de casos – significar uma conduta eivada de uma carga negativa, mais especificamente traiçoeira, oculta, sub-reptícia (vide, usando poucos mais adjetivos que estes, ibid., p. 70, ou João Curado Neves, “Indícios de Culpa ou Tipos de Ilícito? A Difícil Relação entre o n.º 1 e o n.º 2 do Artigo 132.º do CP”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias , Coimbra Editora, 2003, p. 735). O próprio recorrente especifica o conceito de «meio insidioso» através de adjetivos tão próximos entre si (e idênticos aos acima referidos) como «enganador», «dissimulado», «oculto», «traiçoeiro». Por outro lado, também não é de conceder que este significante tenha sofrido sensíveis oscilações no seu significado desde o início da vigência da lei que o prevê, antes se afigurando bastante estável de um ponto de vista diacrónico. Com certeza, o significado de «insídia» não é imediato, na medida em que esse significante não denota automaticamente o seu âmbito. Trata-se de uma palavra caracterizada por alguma «vagueza valorativa»: quer dizer, «a intenção da palavra é definida», no sentido de que não é polissémica, mas há uma certa indefinição quanto «às propriedades que podem circunscrever a [sua] extensão»; no caso, quanto a uma propriedade que se «manifesta sob um juízo qualitativo» (David Duarte, op. cit. , p. 217). 12. Estamos aqui, portanto, perante um conceito bem conhecido da dogmática penal, nesse âmbito geralmente referido como «elemento normativo» do tipo, por contraposição com o de «elemento descritivo». Diferentemente dos elementos do segundo grupo [de que serão exemplo «outra pessoa», «corpo» ou «bebi- das», usados nos artigos 131.º, 143.º e 220.º, n.º 1, alínea a) , respetivamente, do CP], os primeiros só podem ser entendidos «por referência a normas», sejam elas «jurídicas ou não jurídicas» (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal I , pp. 288 e seguintes, 353 e seguintes). Os elementos de caráter normativo não são necessariamente inconciliáveis com a exigência de determi- nabilidade decorrente do princípio da legalidade. Esta é uma ideia amplamente aceite desde que foi superada a conceção positivista-naturalista do facto punível que marcou a segunda metade do século XIX (cfr. ibid ., pp. 238 e seguintes, também para o que aqui segue) – sem prejuízo de a essa conceção justamente muito dever, por razões óbvias, o princípio da legalidade. Logo a conceção normativista, como o próprio nome indica, veio inculcar a ideia de que o tipo legal de crime não pode ser visto como uma descrição valorativa- mente neutra de condutas, mas antes vai já imbuído de um sentido de dever-ser que não pode prescindir por completo de elementos normativos (entre nós, vide e. g., Eduardo Correia, Direito Criminal I , Almedina, 1971, pp. 273 e seguintes). A aceitação de que estes elementos são, mais do que toleráveis, indispensáveis em direito penal, faz com que seja não só legítimo, mas também indispensável, admitir que são suscetíveis de satisfazer o princípio da tipicidade elementos típicos que não tenham amplo uso corrente, ou que tenham em uso corrente um sig- nificado diverso daquele a que a norma jurídica em causa se reporta. Imprescindível, nestes casos, será que o significante usado na norma e o significado a que ela se reporta tenham correspondência valorativa bastante na perceção dos membros da comunidade. 13. Além disso, a «parentalidade» (como o recorrente se lhe refere) entre o conceito de «veneno» e o de «meio insidioso» só contribui para a delimitação do âmbito do segundo. Como bem observa o recorrente, este segundo conceito desenvolveu-se a partir do primeiro. Aliás, o preceito legal aqui posto em crise explicita essa proximidade, pois é de «outro» meio insidioso – outro que não o veneno – que fala o Código Penal no seu artigo 132.º, n.º 2, alínea i) . Como o próprio recorrente nota, o veneno é, «consabidamente, o para- digma do meio insidioso». O envenenamento é uma tradicional espécie agravada de homicídio. Entre nós, era já punido de modo mais severo no Código de 1886 (artigo 353.º), embora, em termos técnicos, não de modo qualificado em relação ao homicídio simples. Esta foi, de resto, uma norma que mereceu abundante debate, podendo o «envenenamento» considerar-se uma previsão típica amadurecida da nossa dogmática
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