TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

185 acórdão n.º 20/19 p. 488, quando nota que o princípio da tipicidade impõe um dever de «reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados»; ou Maria Fernanda Palma, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas , Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2017, quando afirma que a violação deste princípio não ocorre «logo que o legislador utiliza conceitos menos precisos», mas somente «quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal deixa de existir» (itálicos nossos). A ideia para que todas essas referências apontam é a de que o princípio da tipicidade requer um juízo de grau. São a este propósito lapidares as seguintes palavras de José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Cons- tituição”, in Estudos Sobre a Constituição – 2.º Vol., Petrony, 1978, pp. 244 e seguintes: «uma total determi- nação é impossível devido à própria natureza da linguagem»; trata-se aqui de «uma questão de grau que [se] transforma numa questão de qualificação: a famosa mudança de quantidade em qualidade». O problema, naturalmente, está em determinar que grau é esse a partir do qual se dá a violação do princípio, problema esse que pressupõe que se defina um ponto de referência. 10. Será indiscutível que a língua é uma convenção social, no sentido de que os significados corresponden- tes aos vários significantes que a compõem são aqueles que uma dada comunidade lhes atribuir – cfr. e. g. David Duarte, op. cit. , pp. 198 e seguintes, notando que, consequentemente, o «acesso ao ordenamento» pressupõe um exercício de determinação da norma jurídica que permita ultrapassar a barreira da língua (p. 174). Independentemente da questão de saber se tal exercício deve ver-se como uma fase ainda prévia e autónoma em relação a elementos da interpretação jurídica como o teleológico, ou se por eles é já inevita- velmente influenciada, não pode deixar de considerar-se que: sendo a língua uma convenção e o princípio da tipicidade uma garantia eminentemente individual, os significados que os significantes previstos na lei assumem usualmente – ou seja, aqueles que lhes são comummente atribuídos pela generalidade dos indiví- duos pertencentes à comunidade – constituem um ponto fundamental de ancoragem do limite mínimo da escala de determinação pressuposta por aquele princípio. Por outras palavras: se o princípio da tipicidade visa fundamentalmente proporcionar aos indivíduos a possibilidade de conhecerem as condutas que podem praticar sem incorrerem numa pena, o significado geralmente atribuído às palavras previstas na lei constitui uma referência central para ponderar a suficiente determinação desta. Neste sentido, veja-se por exemplo o Acórdão n.º 852/14, notando que os comportamentos proibidos, «para constituírem crimes, têm de ser (...) definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma»; ou o Acórdão n.º 338/03, observando que os tipos legais de crime devem permitir «identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor»; ou ainda o Acórdão n.º 545/00, recorrendo mesmo à noção de « bonus paterfamílias » para se reportar ao destinatário da norma penal e beneficiário primacial do princípio da tipicidade. 11. O conceito que aqui se aprecia é o de «meio insidioso», constante do artigo 132.º, n.º 2, alínea i) , do CP. Pode considerar-se que esse conceito se perfila perante o princípio constitucional da tipicidade como uma das hipóteses «mais duvidosas» (expressão de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal I , p. 186) identifi- cáveis no direito penal português vigente. Contudo, partindo para uma avaliação sobre a constitucionalidade daquela norma, pode logo começar por estabelecer-se que o conceito de «meio insidioso» que dela consta não abarca um conjunto alargado de potenciais significados. A expressão «meio» não criará problemas: trata-se de significar não apenas o instru- mento utilizado na prática do crime, mas igualmente a situação para tanto criada ou aproveitada [cfr. Jorge de Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. cit. , p. 70, referindo-se à alínea h) do mesmo preceito, mas em termos totalmente aplicáveis à sua alínea i) , aqui em causa]: por exemplo, matando a vítima enquanto ela dormia [ ibid. , agora já em referência direta à alínea i) , e acrescentando outros exemplos extraídos da jurispru- dência do Supremo Tribunal de Justiça]. As dúvidas colocar-se-ão quanto à expressão «insídia».

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