TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

184 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL específico preceito que se afigura relevante, e não também o do n.º 3 do mesmo artigo, pois o que aqui está em causa é o segmento da norma ordinária que qualifica a conduta e não aquele que lhe associa uma pena. Como é sabido, o princípio da legalidade penal desdobra-se essencialmente nas exigências de que a criminalização ou a agravação de condutas resulte de lei prévia, escrita, estrita e certa. O princípio tem funda- mentos múltiplos, mas assume especial intensidade a sua dimensão de garantia dos cidadãos contra a atuação punitiva do Estado. Nesse sentido, sublinhou-se no Acórdão n.º 183/08 que não se trata aqui «apenas de um princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao contrário de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias», com «toda a carga axiológico-normativa que lhe está subja- cente». Na doutrina, veja-se por exemplo Maria João Antunes, “A problemática penal e o Tribunal Consti- tucional”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho, I, Boletim da FDUC , n.º 102 (2013), p. 111, destacando esta precisa passagem, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2003, p. 1167, referindo-se ao princípio da legalidade como um «princípio- -garantia» que visa «instituir direta e imediatamente uma garantia dos cidadãos». A vertente do princípio da legalidade que aqui está em causa é a exigência de lex certa – i. e. , de determi- nação da lei penal –, frequentemente referida como “princípio da tipicidade”. Esta vertente do princípio da legalidade foi já objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional em alguns acórdãos, onde se delineou o seu conteúdo. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 168/99, afirmou-se que: «Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurí- dicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.». Esta delineação do conteúdo do princípio da tipicidade traz ínsita uma posição sobre uma questão metodológica fundamental, embora hoje pacífica, qual seja a de saber se é concebível que os termos utili- zados na lei sejam absolutamente unívocos. Ou seja, se há termos cujo significado seja indiscutível, dispen- sando um processo de apuramento do seu significado. Postergada que se encontra a linha do pensamento jurídico segundo a qual o conteúdo das normas jurídicas poderia ser de tal modo claro que do aplicador se poderia esperar que simplesmente as pronunciasse, será hoje consensual que a aplicação de qualquer norma jurídica requer uma atividade interpretativa (cfr. António Castanheira Neves, O Actual Problema Metodoló- gico da Interpretação Jurídica . I, Coimbra Editora, 2003, pp. 65 e seguintes; ou David Duarte, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa. A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionarie- dade instrutória, Coimbra Editora, 2006, pp. 170 e seguintes). É esse, de facto, o entendimento imanente à generalidade das referências jurisprudenciais e doutrinárias sobre o princípio da tipicidade. Assim, ao Acórdão que acabou de se referir, poderá acrescentar-se o Acórdão n.º 852/14, quando afirma que aquele princípio impõe que a lei penal apresente «suficiente densidade» ou «grau de determinação»; que «descreva o mais pormenorizadamente possível» a conduta proibida, deta- lhando-a «suficientemente» ou com «suficiente clareza»; que aquilo que se exige é «alguma determinação» e que aquilo que se proíbe é o recurso a termos de «determinação difícil»; pode também referir-se o Acórdão n.º 93/01, quando observa, com suporte no que sustentara já a Comissão Constitucional nos seus Pareceres n.º 19/78 e n.º 32/80, que «nem sempre é possível alcançar uma total determinação – nem será, porven- tura, desejável –, bastando que o facto punível seja definido com suficiente certeza»; ou ainda o Acórdão n.º 76/16, quando refere que a segurança e a confiança jurídicas postuladas pelo princípio da legalidade penal impõem a exclusão de «normas excessivamente indeterminadas» (sublinhados nossos). No mesmo sentido, na doutrina, veja-se por exemplo Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. I. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime , Coimbra Editora, 2007 [Direito Penal I], p. 186, quando nota que os comportamentos proibidos devem ser «objetivamente determináveis »; ou Américo Taipa de Car- valho, “Artigo 29.º”, in Constituição da República Portuguesa Anotada . I, Universidade Católica Editora, 2017

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