TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
183 acórdão n.º 20/19 Fica então o objeto do presente recurso cingido à norma decorrente do artigo 132.º, n.º 1, n.º 2, alínea i) , do CP, segundo a qual é qualificado o homicídio cometido através da utilização de meio insidioso revela- dor de especial censurabilidade ou perversidade. Do mérito do recurso 8. O entendimento de que é essencialmente no conteúdo dos exemplos-padrão elencados pelo legis- lador no n.º 2 do artigo 132.º do CP que se joga a conformidade do nosso modelo de qualificação do homicídio com o imperativo de determinabilidade da lei penal afigura-se, de resto, correto. Constitui enten- dimento pacífico – embora com nuances em construções doutrinárias diferentes – que: (i) a verificação de um exemplo-padrão, por si só, não conduz à qualificação, sendo necessário que a circunstância nele descrita seja ponderada à luz da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade; e que (ii) a qualificação também não se produz com base direta e exclusiva na referida cláusula geral, sendo necessário que esta se ache indiciada por circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão (ou, pelo menos, análogas na sua «estrutura axiológica» a circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão – cfr. o Acórdão n.º 852/14). A fórmula «não só nem sempre» exprime concisamente estes postulados (Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integri- dade física, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2007, p. 24). Justifica-se sublinhar que, diversamente do que ocorre em outros ordenamentos jurídicos, este modelo de qualificação não é, portanto, um puro modelo de exemplos-padrão: justamente porque da verificação de um exemplo-padrão não resulta imediatamente a qualificação do crime (vide Jorge de Figueiredo Dias / Nuno Brandão, “Artigo 132.º – Homicídio Qualificado”, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I , Coimbra Editora, 2012, p. 49). A conjugação dos dois números do artigo 132.º do CP produz um «resultado qualitativamente novo» e é ela que assegura a «inteira compatibilidade» do modelo com o princípio da legali- dade (Teresa Serra, Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2003, pp. 122 e 127). Sem embargo, a finalidade primacial de cada um daqueles elementos dentro do modelo de qualifica- ção afigura-se distinta. De facto, no âmbito do tipo legal do homicídio qualificado pode discernir-se que: (i) é primacialmente à cláusula geral da especial perversidade ou censurabilidade que cabe exprimir o fun- damento da qualificação (de uma «cláusula agravante determinada e suficientemente descrita» fala, neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral. II. As Consequências Jurídicas do Crime , Coimbra Editora, 1993, p. 204), pois de outro modo, por um lado, as circunstâncias subsumíveis nos exemplos-padrão não teriam de ser submetidas ainda a esse crivo e, por outro, jamais poderia admitir- -se que circunstâncias axiologicamente análogas às que são expressamente descritas nos exemplos-padrão pudessem conduzir à qualificação; e que (ii) é principalmente aos exemplos-padrão que cabe assegurar a sufi- ciente determinação do tipo exigida pelo princípio da legalidade. Não fosse esta exigência, a cláusula geral, ao expressar já bastantemente a razão de ser da qualificação, seria autossuficiente, dispensando a simultânea previsão de hipóteses dotadas de maior concretude. De facto, por si só, a cláusula geral permitiria já avaliar, desde logo, a conformidade do tipo legal do homicídio qualificado com os princípios do bem jurídico e da subsidiariedade da intervenção penal (ainda que uma tal avaliação saia tanto mais beneficiada quanto mais detalhado for tipo legal: cfr. Acórdão n.º 377/15). No entanto, por si só, a cláusula geral já não satisfaria o princípio da tipicidade e a exigência de determinabilidade que ele postula. Por isso, a análise a realizar deverá centrar-se de modo praticamente exclusivo no conceito de «outro meio insidioso» previsto no artigo 132.º, n.º 2, alínea i) , do CP, e apenas pontualmente em outros aspetos do tipo qualificado previsto nesse artigo globalmente considerado. 9. O parâmetro com que o conceito «outro meio insidioso» deve ser confrontado é o do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, onde se encontra parcialmente consagrado o princípio da legalidade criminal. É esse
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