TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

177 acórdão n.º 20/19 13. Para que possa ser objetivamente controlável, a incriminação deve ser objetivamente determinada ou tipici- zada. Como refere Castanheira Neves, “Seria, na verdade, vã a garantia do princípio da legalidade se a incriminação estivesse prevista no modo de “cláusula geral” ou de uma indeterminação tal que não pudesse prever-se previa- mente ou fosse simplesmente função do juízo pessoal do julgador.” 14. Na al. i) do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P., o legislador equiparou a utilização de veneno à utilização pelo autor do homicídio de qualquer outro “meio insidioso”. 15. A referência a “meio insidioso” é um conceito vago, de contornos de tal modo imprecisos, cuja densificação interpretativa exorbita a função interpretativa, postulando um tal grau de exegese na determinação conceitual que possibilita uma aplicação incerta, insegura e pouco racional da lei penal. 16. A razão pela qual o legislador consagrou o citado “exemplo-padrão”, prende-se com a total desprotecção em que a vítima se encontra por desconhecer que contra ela está a ser empreendido um processo causal através da utilização de um meio cujo poder mortífero é oculto, não possuindo assim, qualquer capacidade de defesa, encontrando-se pois facilitada a execução do homicídio, o que é indiciador do maior desrespeito ou desprezo que o agente manifesta na lesão do bem vida, a poder inculcar, no entendimento do recorrente, não só uma atitude mais desvaliosa da personalidade do agente, mas, simultaneamente, uma maior gravidade do facto. 17. O critério orientador que visa diminuir a discricionariedade do intérprete e aplicador da lei penal, através da técnica das circunstâncias que apresentam a possibilidade de tornarem o homicídio especialmente censurável ou perverso, circunstâncias essas padronizadas nas várias alíneas do n.º 2, do art.º 132.º, do CP, permitem que nelas se recorte uma razão de ser, um motivo, ou uma razão comum, um leitbild, que fundamenta um indício de uma culpa mais acentuada. Mas essa razão de ser tem de ser encontrada pelo intérprete perante a descrição de circunstâncias determinadas, sob pena de se adulterar a subsunção de um caso concreto no âmbito da qualificação de homicídio, e de se violar a exigência constitucional conferida pelo princípio da legalidade e do seu corolário primeiro, o prin- cípio da tipicidade – exigência de lei certa; tipo de garantia. 18. O veneno é pois, consabidamente, o paradigma do meio insidioso. Assim se compreende que a utilização de veneno deve ser posta ao mesmo nível da utilização de qualquer outro meio insidioso, dando a compreender que, nesta perspectiva de equiparação, “insidioso” será todo o meio que não constituindo veneno, possua uma forma de actuação sobre a vítima que assuma características análogas às do veneno – do ponto de vista pois, do seu carácter enganador, dissimulado, oculto ou traiçoeiro. A eficácia mortífera do meio deve ser oculta. 19. Desde cedo, porém, se interpretou de forma mais lacta o conceito de “meio insidioso” nele passando a abranger-se não exclusivamente o instrumento/meio em si utilizado para matar – como o veneno –, mas igual- mente o processo ou a conduta globalmente considerada, que impossibilitasse a defesa da vítima, por desconheci- mento de que contra si estivesse a ser desencadeado processo tendente à lesão da vida. 20. Mais se veio alargando a interpretação do conceito (“meio insidioso”), desta feita, fazendo apelo ao meio, instrumento, conduta ou processo que, não apenas impossibilitasse a defesa da vítima, mas de igual sorte, a tor- nasse extremamente difícil, muito difícil, ou mais difícil. 21. Já se considerou também, no sentido do alargamento a que nos vimos referindo, que o meio insidioso não era o meio usual para causar a morte, mas antes um meio inusual que, como tal, surpreendesse a vítima, dificul- tando a sua capacidade de reação/defesa contra um ataque homicida, pese embora não exista a mínima unanimi- dade quanto ao que se considera, ou não, meio usual de agressão homicida. Desde logo, a divergência é assinalável no que ao emprego de armas brancas concerne. 22. Mas Já se disse ou interpretou também, que o “meio insidioso” era aquele que postulava por banda do agente um comportamento claramente preparado ou estudado. 23. O “meio insidioso” vem sofrendo um tal alargamento, permitido pela fluidez conceitual nele encerrada que, actualmente, parece poder ser interpretado (ou não), como qualquer meio/instrumento/conduta/compor- tamento/processo desleal, traiçoeiro, oculto ou dissimulado, que usado de forma sub-reptícia ou repentina (ou não), impeça, torne extremamente difícil, ou simplesmente dificulte a defesa da vítima, seja, ou não, de utilização corrente ou vulgar para produzir a agressão, seja um meio claramente estudado (ou não), independentemente do poder mortífero do meio se encontrar oculto, ou não.

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