TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
176 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL interpretativos das cláusulas gerais de culpa insertas no n.º 1 do citado preceito, sustentando-se usualmente que a técnica legislativa utilizada corresponde à dos exemplos-padrão ( Regelbeispielen Technik ). 4. Crê o recorrente que, por exigência do tipo de garantia (que também abrange a culpa enquanto circunstância que concorre para fundamentar a punição do agente), o que não é, ou o que não deve ser possível, leia-se, o que não é compatível com o princípio da legalidade penal, é procurar delimitar cláusulas gerais (ainda que referentes à culpa) fazendo apelo a conceitos vagos, indeterminados ou imprecisos (mesmo que também estes referentes à culpa), sob pena da respetiva delimitação se tornar absolutamente desnecessária. Se se procura precisar um conceito com outro que constitui uma imprecisão, não há precisão possível, não há determinação, nem possível se torna a determinabilidade num prisma de objetividade controlável. 5. Em bom rigor, se tudo é culpa, referindo-se à atitude que o agente expressa na prática do facto ilícito e, como tal, não carecendo de precisão típica, forçoso se tornaria concluir que desnecessário se evidenciaria o elenco exemplificativo e indiciador previsto no n.º 2 do art.º 132.º, do C.P.. 6. Se o homicídio qualificado assenta exclusivamente no tipo de culpa expresso na especial censurabilidade e perversidade, sem que o intérprete haja de levar em linha de conta os exemplos-padrão que visam a delimitação de tais cláusulas gerais, dever-se-ia permitir como agravado qualquer homicídio em que o agente exibisse tais qua- lidades de carácter ou de personalidade, independentemente pois, de as mesmas corresponderem aos indícios ou sintomas que o legislador acolheu no n.º 2 do citado preceito incriminador. 7. Porém, não foi essa a interpretação que esse Douto Tribunal assumiu já, pronunciando-se pela inconsti- tucionalidade da interpretação normativa de decisão judicial, que entendeu condenar o arguido por homicídio qualificado, sem que as circunstâncias em que o facto foi praticado se reconduzissem ao modelo ético valorativo plasmado em qualquer “exemplo-padrão” inserto nas diversas alíneas do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P., pese embora o Tribunal a quo haja considerado particularmente perversa e censurável a atitude expressa pelo agente na prática do facto. 8. De resto, nem verdadeiramente se pode sustentar ter vindo a ser essa a posição expressa pelo legislador que, pese embora as 41 alterações que o Código Penal vigente leva já, em seis delas alterou o art.º 132.º do C.P., no sentido de aditar novas circunstâncias relativas quer à forma de execução do facto, quer à relação que se estabelece entre o agente e a vítima, quer à finalidade, ou mesmo à motivação do agente na causação da morte. 132.º 9. Face à evolução legislativa do preceito, evidencia-se que é desiderato do legislador balizar a interpretação das cláusulas gerais de “especial censurabilidade e perversidade”, precisamente porque de cláusulas gerais se tratam, ainda que se refiram à culpa. 10. E se assim é, bem se compreende que tal atitude compreensiva interpretativa, guiada pelo legislador nos “exemplos-padrão” que vai construindo como indiciários de uma culpa acrescida, não fazer sentido que os ditos “exemplos-padrão” sejam, também eles, integrados por referência a conceitos vagos, indeterminados ou impre- cisos. De outro modo, não se justificaria a sua existência, cuja função é a de delimitar e nortear o intérprete no preenchimento do tipo de culpa referenciado pela indeterminação da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade. 11. Desta feita, tem para si o ora recorrente, que só pode ser conforme à Constituição e às exigências da lega- lidade penal do nullum crimen, nulla poena sine lege certa a interpretação da norma vertida no n.º 1, do art.º 132.º do Código Penal, que veja balizada a indeterminação das cláusulas gerais (da culpa) – especial censurabilidade e perversidade – por modelos ético-valorativos expressos na técnica dos “exemplos-padrão” cujo conteúdo semântico e interpretativo dos vocábulos que os integram seja facilmente determinável, não constituindo, eles próprios, con- ceitos vagos, indeterminados ou imprecisos. 12. Não se pugna por uma interpretação puramente literal, como outrora se chegou a conceber (Beccaria). Como Castanheira Neves, diremos que “A interpretação e aplicação concreta da lei penal, respeitados os limites formais da sua validade, deverá orientar-se sem restrições pela metodologia geral e normativamente adequada da interpretação-aplicação normativo-teleologicamente válida. Não o impede a função de garantia do princípio da legalidade – que apenas postula uma incriminação e uma punição prévia e objetivamente controlável – e impõe-no a nossa actual concepção do direito” (itálico nosso).
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