TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
172 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL referida como “princípio da tipicidade”, que traz ínsito uma posição hoje consensual de que a apli- cação de qualquer norma jurídica requer uma atividade interpretativa, requerendo o princípio da tipicidade um juízo de grau, pois «uma total determinação é impossível devido à própria natureza da linguagem», estando o problema em determinar que grau é esse a partir do qual se dá a violação do princípio. IV - O conceito de «meio insidioso» não abarca um conjunto alargado de potenciais significados: a expres- são «meio» não criará problemas, pelo que as dúvidas colocar-se-ão quanto à expressão «insídia» que, no entanto, não é, desde logo, um significante polissémico, antes aponta para um conjunto de signi- ficados bastante bem recortados e que, ademais, não se expõem a particulares oscilações contextuais; por outro lado, também não é de conceder que este significante tenha sofrido sensíveis oscilações no seu significado desde o início da vigência da lei que o prevê, antes se afigurando bastante estável de um ponto de vista diacrónico; embora o significado de «insídia» não seja imediato, na medida em que esse significante não denota automaticamente o seu âmbito, tratando-se de um conceito geralmente referido como «elemento normativo» do tipo, a aceitação de que os elementos normativos são, mais do que toleráveis, indispensáveis em direito penal, faz com que seja não só legítimo, mas também indispensável, admitir que são suscetíveis de satisfazer o princípio da tipicidade elementos típicos que não tenham amplo uso corrente, ou que tenham em uso corrente um significado diverso daquele a que a norma jurídica em causa se reporta; imprescindível, nestes casos, será que o significante usado na norma e o significado a que ela se reporta tenham correspondência valorativa bastante na perceção dos membros da comunidade. V - A previsão conjunta, na norma em análise, do conceito de «veneno» com o de «outro meio insidioso» estreita ainda mais o possível campo de significação do segundo, constituindo o primeiro – poderia até dizer-se, embora de modo mais figurado do que rigoroso – como que um seu exemplo-padrão; quer dizer, um exemplo indiciador de um conceito que se podia já considerar, prima facie , suficientemente determi- nado para poder desempenhar sozinho o papel de tipo indiciador da cláusula geral da «especial censurabi- lidade ou perversidade»; mais sinteticamente: como que um exemplo-padrão de um exemplo-padrão. VI - Ao aceitar-se que os tipos legais de crime podem, e mesmo devem, fazer uso de elementos normati- vos, está-se necessariamente a aceitar que a sua suficiente determinação dependerá também de eles proporcionarem aos tribunais um quadro suficientemente recortado para que estes, no exercício de uma atividade interpretativa que atenda – aqui sim já inquestionavelmente – a outros elementos da norma penal para além do literal (mas sempre sem o perder de vista), possam fazer, ainda e sempre, um exercício de aplicação do direito e não já de criação de direito; além de isso ainda ser imposto pelo princípio da tipicidade na sua dimensão de direta e imediata garantia dos cidadãos, avulta agora com maior intensidade a sua dimensão de concretização do princípio da separação de poderes. VII - Também neste plano não sobram muitas dúvidas sobre a suficiente determinação do elemento típico em análise, havendo praticamente um consenso na comunidade jurídica sobre a teleologia deste fun- damento de qualificação, sendo o objeto desse consenso bastante bem definido, podendo condensar- -se na noção de que a utilização de meios de caráter insidioso praticamente impossibilita a vítima de esboçar uma defesa, concluindo-se que o elemento «outro meio insidioso» constante do artigo 132.º, n.º 2, alínea i) , do Código Penal, constitui um elemento típico dotado de um grau de determinação suficiente para satisfazer a exigência de determinação decorrente do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
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