TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019

153 acórdão n.º 19/19 Administração participar no exercício do poder punitivo estadual, aplicando penalidades aos administrados, o que significa que esse direito e esse poder, enquanto emanação do jus puniendi , estão matizados pelos princípios e pelas regras “penais”. Por isso, há de admitir-se que os princípios constitucionais do direito penal possam influenciar os direitos sancionadores que derivam da mesma matriz. Como acrescentam os referidos autores, tem de «entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, desig- nadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar». Assim, os princípios com relevo em matéria penal, como os da legalidade, da culpa, non bis in idem , da não retroatividade, da proibição dos efeitos automáticos das penas, da proibição da transmissão da responsabilidade penal, podem estender-se ao domínio contraordena- cional, até porque são derivados de princípios do Estado de Direito e da segurança jurídica, nomeadamente sob o seu aspeto de proteção da confiança, princípios constitucionais de validade fundamentante da ordem jurídica. O que não significa, é evidente, que não deixe de haver diferenciações na extensão desses princípios ao domínio contraordenacional. É que a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e imponderada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal. Tais ilícitos não se distinguem apenas pelo diferente tipo de cominação – uma coima ou uma pena – mas sobretudo por um critério material que atende à diferença de bens jurídicos protegidos e à diferente ressonância ética dos ilícitos. Num critério de distinção situado num plano ético, como o seguido por Figueiredo Dias, é possível distinguir condutas a que «antes e inde- pendentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas a que não corresponde, um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente relevante, no segundo caso axiologicamente neutra. O que no direito das contraordenações é axiologicamente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal – sem prejuízo de, uma vez conexionada com este, ela passar a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social» (cfr. “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Eduardo Correia, et al. Direito penal eco- nómico e europeu: textos doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, p. 26 e 27). Ora, esta distinção tem relevância no relacionamento desses direitos com a ordem jurídico-constitucional. Como refere o mesmo autor «são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem a legislação penal e a legislação das contraordenações».» Assim sendo, a pretendida equiparação do direito contraordenacional ao direito penal não assume, no caso vertente, qualquer base que habilite ou fundamente o julgamento de inconstitucionalidade proferido na decisão judicial recorrida. Desde logo, quanto à inconstitucionalidade orgânica – a única a que a decisão judicial se refere – o parâmetro constitucional a ter em conta seria sempre o invocado, isto é, o artigo 165.º, n.º 1, alínea d) , da CRP, não bastando qualificar as normas regulamentares em causa como normas «incrimi- nadoras» (e não o são) para se poder ver afetada a competência do legislador parlamentar na definição (em concreto) dos crimes e penas, matéria que lhe é reservada nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Lei Fundamental, mas que não é regulada no caso dos autos. Por outro lado, a tratar-se de uma ofensa ao artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, tal só poderia ocorrer no plano substancial, sendo que – tal como assinalado, aliás, nas alegações do Ministério Público, ponto 14 e conclusão 12.ª ( supra transcritas em I, 4.) – o conteúdo dos artigos 37.º e 77.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, do RUEM, não tem a virtualidade de ofender garantias pro- cessuais e procedimentais dos arguidos em processo contraordenacional (a que não se referem), tratando-se a questão controvertida tão só de uma questão de competência para a produção de normas jurídicas, ou seja, de uma inconstitucionalidade orgânica. Nestes termos, a invocação do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, seja a título complementar, seja autonomamente, não assume relevância para a decisão da questão de inconstitucionalidade colocada nos presentes autos.

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