TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 104.º volume \ 2019
137 acórdão n.º 19/19 Deste sentido profundo da norma constitucional de competência, que não foi considerado pela decisão recor- rida, procedem relevantes corolários para a correta compreensão do significado e alcance dos regulamentos autóno- mos (das autarquias locais) que são o cerne da questão de constitucionalidade versada no presente recurso. b) Idem : regulamentos autónomos 4. Com efeito, como discorre a doutrina mais autorizada, ainda no domínio da versão fundadora da Consti- tuição, “A administração indireta ou descentralizada tem por definição ou por natureza um poder regulamentar próprio ou autónomo. Nisto se traduz a sua “autonomia”. Daqui decorre que tal poder não lhe é delegado pelo Estado-administrador”. Adiante, advoga que “(…) os regulamentos autónomos podem situar-se neste domínio e designadamente intervir no âmbito dos direitos de propriedade e liberdade e dos direitos fundamentais em geral” e, ainda mais incisivamente, “Esta competência regulamentar [das autarquias locais] tem de específico, como já atrás dissemos, poder constitucionalmente abranger o próprio domínio das matérias reservadas à lei e em especial o domínio da propriedade, da liberdade e das penas . Os regulamentos do Governo não podem criar impostos nem impor penas – mas as autarquias locais não sofrem deste discriminação constitucional, podendo os seus regulamen- tos ter um conteúdo mais amplo do que aquele que é permitido aos regulamentos do Governo: podem, nos limites de lei, criar impostos e impor sanções (…)” 2 [2 Afonso R. Queiró, Lições de direito administrativo, vol. I., Coimbra, 1976, 431, 433 e 461 (itálicos nossos). Noutra formulação, não menos impressiva, “existe uma diferença essencial entre os regulamentos dos organismos da administração autónoma e os regulamentos do Governo e demais órgãos da administração direta ou indireta do Estado. Enquanto os regulamentos governamentais são meros instrumentos secundários de desenvolvimento e apli- cação das leis, os regulamentos autónomos são expressão de “autodeterminação” na realização de interesses próprios, uma espécie de “autolegislação” democraticamente legitimada quanto ao objeto (…) e quanto aos seus destinatários (…). Isso aponta para um regime específico dos regulamentos autónomos face aos regulamentos do Estado” 3 [ 3 Vital Moreira, Administração autónoma e associações públicas , Coimbra Editora, 1997, 182.] 5. Por outra parte, ainda relativamente ao texto da norma constitucional de competência, dele não decorre qualquer restrição quanto ao objeto dos ditos regulamentos “próprios” (sem prejuízo, bem entendido dos limites mencionados – scl., rememorados – no preceito em apreço, ou seja, “da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutela”). Podem assim tais regulamentos “próprios”, quanto ao respetivo objeto, nomeadamente assumir feição de regu- lamentos de polícia, nomeadamente urbanística e de edificação, estabelecendo assim limitações às liberdades pes- soais, na medida em que consubstanciem actos ou atividades de risco, em matéria urbanística e edificativa, tudo em ordem a prevenir que as mesmas redundem em danos, pessoais e materiais, para interesses públicos merecedores e carecidos de tal proteção. 6. No plano da lei, os municípios (a assembleia municipal, sob proposta da câmara) estão, em geral, taxativa- mente investidos de competência para emitirem regulamentos com eficácia externa em, e em especial, “no exercício do seu poder regulamentar próprio, os municípios aprovam regulamentos municipais de urbanização e de edifica- ção” [RJFMF, arts. 53.º, n.º 2, al. a) , e RJUE, art. 3.º, caput, respetivamente]. Naturalmente, em face do seu escopo, estes regulamentos municipais, em matéria urbanística e de edificação, contêm por definição disposições de polícia, com o seu típico conteúdo deôntico, com função regulatória, seja de permissões ou imperativos (proibições, ordens). 7. Constitucional e legalmente habilitados para editarem tais normas administrativas, gerais, abstratas e com eficácia externa, nomeadamente com o conteúdo de proibições e ordens, é inerente a tal prerrogativa, está nela implícita pela própria natureza das coisas, que tais imperativos venham aparelhados das pertinentes sanções de caráter administrativo, para o caso de incumprimento ou infração pelos seus destinatários. Isto, bem entendido, até em natural e necessária consonância com o nosso sistema de “administração execu- tiva”, nomeadamente em relação à prerrogativa de autoridade da “autotutela executiva” em que está investida a
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