TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
539 acórdão n.º 606/18 com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade ( nullum crimen sine lege certa ). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justi- ficam o poder punitivo». O princípio da legalidade penal opera, pois, como um princípio defensivo, que constitui, por um lado, «a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado» cometidos no âmbito do exercício do ius puniendi de que o mesmo é exclusivo titular (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal , Universidade de Coimbra, edição policopiada, 1988-9, pp. 68 e seguintes), e se apresenta, por outro, como condição de previsibilidade e de confiança jurídica, no sentido em que permite a cada cidadão dar-se conta das condutas humanas que, em cada momento, relevam no direito criminal (cfr. Acórdãos n. os 105/13 e 587/14). 17. Uma vez que o problema colocado pelo recorrente diz respeito à (in)suficiente determinação do tipo legal constante do n.º 2 do artigo 292.º do Código Penal, é com o princípio da legalidade criminal, na dimensão de lei certa, que cumpre confrontar a norma impugnada. Com a exigência de lei certa quer-se significar que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhe correspondam. Nesta aceção, o princípio da legalidade tem como corolário o princípio da tipicidade, cujo sentido é o de impor ao legislador penal o ónus de, ao definir os tipos legais de crime, o fazer através da descrição precisa e certa do comportamento proibido, sem recurso a formulações vagas, incertas ou insuscetíveis de delimi- tação (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , I vol., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 495). Vale isto por dizer que, enquanto limite às possibilidades de modelação típica constitucionalmente imposto ao legislador ordinário, a exigência de lei certa obriga a que a caracterização do ilícito típico seja levada a um tal ponto que torne possível aos destinatários da norma incriminadora conhecer os elementos, objetivos e subjetivos, que integram da infração e, através da apreensão, por essa forma, do elenco tanto dos valores protegidos como dos comportamentos proibidos pelo ordenamento jurídico-penal, exercerem, de forma consciente e esclarecida, a respetiva liberdade de autodeterminação. 18. Sem que isso signifique qualquer espécie de renúncia à função de garantia desempenhada pelo tipo legal – isto é, à ideia de que o conjunto de elementos que integram o tipo de ilícito deverá permitir que, logo em face dele, «se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos» (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal , Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 186) –, do princípio da legalidade não decorre para o legislador penal qualquer ónus de, ao definir o universo das ações e omissões criminal- mente relevantes, se socorrer sempre e só de formulações normativas integralmente descritivas e fechadas. Para além dos inconvenientes que, do ponto de vista operativo, não deixariam de associar-se a uma definição excessivamente casuística do facto punível – pense-se, desde logo, nas consequências que adviriam da inevitável existência de lacunas a esse nível –, a própria complexidade crescente das sociedades hodiernas, caracterizada por uma diversidade cada vez maior de formas de atuação e de interação humanamente signifi- cativas, tornou inevitável o recurso, no âmbito da caracterização do ilícito típico, a «elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor» ( idem ), em detrimento de fórmu- las incriminadoras de conteúdo integralmente pré-determinado. E, perante a não rara impossibilidade de, mesmo através do emprego de tais elementos, incluir na previsão da norma penal a descrição integral – isto é, em toda a sua possível extensão, da matéria proibida, tornou igualmente imprescindível a remissão de parte
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