TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
538 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL respetivamente)» –, influência essa que «diminuiu a sua destreza na condução, afetando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente». Em face do quadro factual traçado em juízo e dos pressupostos jurídico-constitutivos da afirmação da respetiva relevância criminal, torna-se evidente que o objeto do recurso, ao incidir sobre o tipo legal con- stante do n.º 2 do artigo 292.º em toda a sua abrangência e extensão, se encontra definido em termos exces- sivamente amplos, carecendo, por isso, de ser previamente delimitado. Ora, em estrita consonância com a ratio decidendi do acórdão recorrido, o objeto do presente recurso apenas pode ser integrado pelo segmento do artigo 292.º, n.º 2, do Código Penal, que torna criminalmente responsável «quem, pelo menos por neg- ligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, […] por se encontrar sob influência de substâncias psicotrópicas […]». É esta, pois, a norma que cumpre seguidamente confrontar com o princípio da legalidade penal, o pri- meiro dos parâmetros invocados pelo recorrente. C. Do Mérito 16. Historicamente associado à reação liberal contra o poder penal ilimitado do soberano, a discricio- nariedade na aplicação das penas e a possibilidade da aplicação retroativa de sanções criminais, o princípio da legalidade penal foi consagrado pela primeira vez, enquanto símbolo de proteção do indivíduo perante intervenções estaduais excessivas ou arbitrárias, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, daí tendo irradiado para a totalidade dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos huma- nos. O princípio da legalidade penal encontra-se, assim, hoje consagrado no artigo 11.º, n.º 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 7.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 15.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, bem como no artigo 49.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Em linha com essa sua vocação universal, o princípio da legalidade – ainda hoje enunciado através do brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege – constitui um elemento central do regime constitucio- nal da lei penal na generalidade dos atuais ordenamentos jurídicos, tendo sido expressamente acolhido no artigo 29.º, n. os 1 e 3, da Constituição. Incluído no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, o princípio da legalidade encontra-se consti- tucionalmente consagrado enquanto garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, concretizando assim a ideia de que um Estado de direito (artigo 2.º da Constituição) deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal. (cfr. Claus Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre, München, 1992, p. 67, e Acórdão n.º 524/17). Estavelmente consolidado na jurisprudência constitucional, tal entendimento foi particularmente explicitado no Acórdão n.º 183/08, aresto no qual o sentido e alcance do princípio da legalidade criminal foram clarificados nos termos seguintes: «Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico- -normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totali- tários do século XX (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178). Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência,
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=