TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
519 acórdão n.º 604/18 Em primeiro lugar, a deserção está prevista na lei para as situações em que o processo se encontra a aguardar impulso processual das partes há mais de seis meses. Uma vez que sobre as partes impende o ónus do impulso processual (artigo 6.º, n.º 1, e 351.º, n.º 1, do CPC), não podem queixar-se da extinção da instância por deserção, pois sofrem as consequências da falta de cumprimento desse ónus. A sanção pelo não cumprimento do ónus de diligência na condução do processo – deserção da instância – constitui uma manifestação do princípio da auto-responsabilidade das partes, que continua a vigorar no processo civil. Como refere Lebre de Freitas, a propósito deste princípio «a omissão continuada de atividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem também efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, (...) na deserção da instância» ( ob. cit , p. 147). Assim acontece nas ações com pluralidade ativa de partes – ação proposta por dois ou mais autores – em que o ónus de promover o incidente de habilitação de sucessores do autor falecido cabe a qualquer um dos autores sobrevivos. Os recorrentes interpretam os artigos 281.º, n.º 1, e 351.º, n.º 1, do CPC no sentido de que o ónus de deduzir o incidente de habilitação cabe apenas aos herdeiros do autor falecido, mas – como está sedimentado na jurisprudência constitucional – não cabe ao Tribunal resolver divergências jurídicas quanto aos preceitos de direito ordinário. A interpretação que o tribunal fez da norma impugnada, aplicando-a como efetivo funda- mento de direito da decisão que decretou a deserção da instância, foi no sentido de que o ónus de impulso processual cabe a qualquer dos autores coligados. Em segundo lugar, a gravidade da extinção da instância pela paragem prolongada do processo é ate- nuada, quer pela exigência de “negligência das partes”, quer pelo reconhecimento ope judicis da deserção (n. os 1 e 4 do artigo 281.º do CPC). Não é qualquer paralisação que causa a deserção, mas apenas a que resulta de um ato que só as partes estão em condições de praticar. A deserção não prescinde, pois, do nexo entre a paragem do processo e a não atuação do ónus de impulso processual que recai sobre as partes e da negligência destas no que a tal omissão respeita. Deste modo, as partes têm sempre a possibilidade de demonstrar no processo que a paragem se deve a causas estranhas à sua vontade, por resultar de facto de terceiro, do tribunal ou de força maior que as impede de praticar o ato em falta. Tal como ocorre no caso paralelo de justo impedimento (artigo 140.º do CPC), as partes oneradas com o impulso processual podem atempadamente informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando a situação de negligência. O comportamento omissivo das partes é apreciado e valorado por ato do juiz, pois a deserção não se produz automaticamente pelo decurso do prazo de seis meses; depende de declaração judicial que avalia se a paragem do processo resulta efetivamente de negligência das partes em promover o seu andamento e se estão preenchidos os demais pressupostos da deserção. Por isso, a existência de um impedimento à satisfação do ónus de impulso processual pode afastar o juízo de negligência sobre a conduta das partes. Em terceiro lugar, a deserção é uma ocorrência que extingue a instância, sem prejudicar o direito de ação e o direito material ou substancial em litígio. Quer dizer, extinta a instância por deserção, o autor conserva o direito de propor nova ação sobre o mesmo objeto. A deserção não opera, pois, sobre as situações jurídicas materiais que constituem o objeto do processo, mas apenas sobre a relação jurídica processual, que em conse- quência extingue. A deserção tem o mesmo alcance que a absolvição da instância: não afeta o direito à ação, nem o direito que pela ação se pretendia fazer valer, afeta unicamente a relação processual que se constituíra, a instância. É uma forma de caducidade, por efeito do decurso do tempo, do direito ao desenvolvimento de uma concreta instância, que faz cair todo o processo. A deserção extingue totalmente a instância e não apenas na parte relativa ao interesse do autor falecido, porque o pressuposto é a paragem do processo imputável às partes – situação indesejada, que fundamenta objetivamente a cominação – e não a vontade de cada um dos autores sobrevivos ou sucessores do falecido. Assim, não se afigura que a deserção da instância origine consequências processuais totalmente des- proporcionadas à gravidade da falta de cumprimento do ónus de promoção pelos autores sobrevivos do incidente de habilitação dos sucessores dos autores falecidos.
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