TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018
672 imponha (e não apenas permita) decisão diversa da recorrida, como decorre da citada disposição legal. Em função de tal poder, e em sede de impugnação ampla da decisão em matéria de facto deduzida por sujeito processual para tal legitimado, pode, assim, verificar-se uma situação em que o tribunal de júri absolva o arguido e o tribunal da relação, composto apenas por juízes profissionais, o condene, tal como sucedeu no caso vertente; ou vice-versa. Contudo, deve notar-se, a este propósito, que não está em causa, no presente recurso, uma interpretação normativa mais restrita, que articule o sentido absolutório da decisão proferida por tribunal de júri com a legitimidade para o recurso conferida ao Ministério Público e ao assistente. A interpretação normativa ora questionada é mais ampla na sua formulação, referindo-se genericamente aos poderes do tribunal da relação para modificar os factos dados como provados e não provados, tal como decidido pelo tribunal de júri, que não tem, à semelhança do que sucede com o tribunal coletivo, a última palavra quanto à matéria de facto. 9. A competência do tribunal de júri está definida no artigo 13.º do Código de Processo Penal. A regu- lamentação da sua composição, dos seus poderes de cognição, da capacidade para ser jurado e da seleção dos mesmos consta do Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de dezembro. Ao contrário da tradição anglo-americana, na qual o júri intervém na questão da culpabilidade, mas não já na da sanção, que fica reservada ao juiz, no direito processual penal português, «o júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção» (artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 387-A/87, artigos 368.º e 369.º do CPP), ou seja, decide irrestritamente sobre tais questões penais, seja no que respeita aos respetivos fundamentos de facto, seja quanto aos fundamentos de direito. Antes da reforma de 1998, o sistema de recursos assentava num modelo de grau único de recurso, assegurando-se apenas um duplo grau de jurisdição: das sentenças do tribunal singular recorria-se, de facto e de direito, para o tribunal da relação, não sendo admitido um ulterior recurso para o Supremo; dos acór- dãos do tribunal coletivo e do tribunal de júri recorria-se per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça. Os recursos de acórdãos destes tribunais eram, então, obrigatoriamente interpostos junto do Supremo Tribunal de Justiça, sob a forma de revista ou de revista alargada, que tinha o seu objeto limitado a questões de direito e ao conhecimento dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, permitindo a proteção contra erros notórios na apreciação da prova, desde que resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Com a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, estabeleceu-se uma rutura em relação ao modelo originário do Código, no âmbito do recurso das decisões do tribunal coletivo: este recurso passou a poder incidir sobre a matéria de facto, quando interposto para o tribunal da relação, podendo ainda, em certos casos, recorrer-se para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pela relação, assim se introduzindo, pela primeira vez, um duplo grau de recurso. Na reforma de 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto), alargou-se às decisões do tribunal de júri este regime de recorribilidade, passando os acórdãos proferidos por um tribunal de júri a ser suscetíveis de inter- posição de recurso para o Tribunal da Relação, podendo ser objeto de impugnação ampla do julgamento em matéria de facto, nos mesmos termos em que o era, desde a alteração ao regime de recursos em processo penal operada em 1998, o julgamento proferido por tribunal coletivo. Assinale-se, desde já, que essa opção do legislador motivou, logo após a sua edição, críticas na doutrina, todas contidas no plano infraconstitucional. Apontou-se-lhe o vício, em caso de recurso de acórdão proferido por tribunal de júri, de não ter procedido à reconfiguração do tribunal superior, que permaneceu constituído exclusivamente por juízes de direito, sem possibilidade de assumir uma componente popular, retirando-se desse modo ao tribunal de júri a última palavra em todas as questões relevantes para a definição da responsa- bilidade penal do arguido (cfr. Figueiredo Dias, «Sobre a revisão de 2007 do Código de Processo penal portu- guês», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2008, p. 381; Henriques Gaspar, «Processo penal: reforma ou revisão; as rupturas silenciosas e os fundamentos (aparentes) da descontinuidade», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal , 2008, p. 363; Damião da Cunha, «Anotação ao artigo 207.º da Constituição», in Jorge
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=