TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

667 acórdão n.º 417/18 essencialmente, o edifício jurídico-normativo coevo em termos susceptíveis de a desvalorizar ou desvirtuar, tanto mais que as transformações sofridas pelos institutos relevantes em nada viram afetados os seus traços identitários. 7. Sem prejuízo do entendimento de que a jurisprudência do Tribunal Constitucional, agora reclamada, bas- taria para sustentar a posição do Ministério Público no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação normativa desaplicada nos autos, passámos a analisar mais pormenorizadamente o decidido. 8. A douta decisão recorrida, incorporando a tese expendida por Maria João Antunes, Nuno Brandão, Sónia Fidalgo e Ana Pais, na RLJ , ano 145, n.º 3999, alicerçou a sua convicção jurídica na ideia, ali expressa, de que a “modificabilidade da decisão recorrida em matéria de facto pelo tribunal de recurso contende com o que é, his- tórica e materialmente, o cerne da intervenção do júri na administração da justiça penal”, asserção que, em nosso entender, não logra comprovar nem demonstrar, e da qual pretende extrair a conclusão de que ao tribunal do júri deverá caber sempre, por força das alegadas razões históricas e materiais, “a última palavra em matéria de facto”. 9. Efectivamente, a história nacional dos juízes de facto e dos tribunais de júri, bem sintetizada no referido Acórdão n.º 261/94, não parece corroborar a concepção exposta no douto aresto recorrido sobre a importância do instituto e, sobretudo, sobre a sacralidade da sua natureza e a inimpugnabilidade das suas decisões quanto à matéria de facto. 10. À falibilidade do argumento histórico-comparatístico, no que à fundamentação da tese sustentada pelo douto acórdão recorrido concerne, procurámos aditar a comprovação da insuficiência e ambiguidade dos elemen- tos de ordem lógica, sistemática, histórica e teleológica, com que o tribunal a quo pretendeu sustentar a tese da inconstitucionalidade da interpretação normativa desaplicada. 11. Inferimos, assim, paralelamente, que também não parece resultar da mera invocação do princípio democrá- tico a conclusão de que o tribunal do júri evidencie uma legitimidade democrática superior à dos tribunais cons- tituídos por juízes profissionais, afigurando-se-nos o argumento (utilizado pelo tribunal a quo ), de que a justiça administrada por aquele tribunal – o do júri – o seria “pelo povo” e não, meramente, “em nome do povo” – como a administrada por juízes togados –, um argumento não fundamentado, que desvaloriza o texto constitucional e se posiciona, retoricamente, no limite do falacioso. 12. Como parece evidente, não é aceitável considerar que os jurados são o povo que administra justiça em nome próprio, ao passo que os juízes profissionais se encontram, estranhamente, excluídos dessa categoria e apenas administram justiça em nome do povo, o que aliás conduziria à conclusão de que o tribunal do júri, de natureza mista no presente quadro jurídico-legal, incorporaria quatro soberanos exercendo o poder em nome próprio a par de três juízes profissionais que exerceriam o seu poder em nome dos anteriores. 13. Também no que toca ao argumento da suposta definitividade das decisões sobre matéria de facto do tribu- nal do júri resultante da análise do direito comparado, não se encontra o mesmo, em nosso entender, minimamente fundamentado, ou sequer aflorado, na douta decisão recorrida, razão pela qual não poderá deixar de soçobrar. 14. Em síntese, concluímos que, carreados para os autos os expostos elementos e argumentos, julgámos poder concluir que, das razões elencadas no douto aresto recorrido, todas elas alheias ao texto constitucional e estranhas ao processo hermenêutico de génese literal, que conduziram à decisão ora impugnada, não se verifica que qualquer delas – ou quaisquer delas conjugadas – permita desvendar a natureza ou descobrir qualidades imanentes a todo e qualquer tribunal do júri, que imponha que a este esteja sempre reservada a última palavra sobre a decisão da matéria de facto. 15. Por fim, atendendo aos elementos gramatical e lógico ínsitos na letra do n.º 1, do artigo 207.º, da Consti- tuição, apurámos que, no que à natureza, competência, configuração e poderes do júri concerne, se limitou o legis- lador constitucional a balizar, positiva e negativamente o seu âmbito de intervenção – a qual ocorrerá nos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada – e a determinar que a mesma terá lugar, designadamente, a requerimento da acusação ou da defesa, concedendo ao legislador ordinário uma ampla margem de liberdade na conformação da ordem jurídica infraconstitucional quanto a tudo o mais. 16. E, assim sendo, não resulta da letra ou, sequer, do espírito das normas contidas no n.º 1, do artigo 207.º, da Constituição da República Portuguesa, que o legislador constitucional tenha, expressa ou implicitamente,

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