TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018
652 Mais tarde, tal regime foi integralmente substituído pelo regime constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, presentemente em vigor. Nos artigos 59.º e seguintes deste último diploma governamental prevê-se a possibilidade de a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima por comportamento contraorde- nacional vir a ser judicialmente impugnada por recurso para o juiz de direito da comarca em cuja área tenha sede essa mesma autoridade administrativa (idêntica era a solução consagrada no Decreto-Lei n.º 232/79, em cujo rela- tório expressamente se reconhecia que, após algumas hesitações, e em prejuízo da competência como que natural dos tribunais administrativos nesta área, se acabara por decidir atribuir aos tribunais comuns a competência para conhecer de tais recursos). Ora, no capítulo IV do Decreto-Lei n.º 433/82, sujeito à epígrafe «Recurso e processo judiciais», apenas se exige, com vista ao seguimento de um qualquer recurso desta espécie, que o arguido por si, ou por intermédio de defensor, o apresente por escrito à autoridade administrativa que tenha aplicado a coima, no prazo de cinco dias após o seu conhecimento da decisão, e que, logo no requerimento de interposição de recurso, alegue e conclua sumariamente (cf., em especial o artigo 59.º, n. os 2 e 3). Nenhum outro pressuposto de admissibilidade é reclamado pelo Decreto-Lei n.º 433/82. O n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 21/85, que impõe ao arguido o ónus de preliminarmente depositar o quantum da coima – alterou assim, ainda que apenas para um particular leque de ilícitos de mera ordenação social, e radicalmente, o regime geral de impugnação das decisões administrativas aplicativas de coimas. 5 – Com esta modificação, embora só setorial, desse regime geral, entrou o Governo, na realidade, e como de seguida se vai ver, na área de reserva legislativa parlamentar. Já antes da revisão constitucional, quando a situação, ao nível da CRP, não era em absoluto líquida, teve o Executivo o cuidado, para editar o Decreto-Lei n.º 433/82, de se munir antecipadamente de uma autorização legislativa, da autorização constante do artigo 2.º da Lei n.º 24/82, de 23 de agosto. Depois da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, tudo ficou claro nesse domínio, e o artigo 168.º, n.º 1, alínea d) , da CRP passou a dispor, expressamente, que competia em exclusivo à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do processo relativo aos ilícitos de mera ordenação social. Nesse regime processual geral – o ingenium da lei proíbe mesmo outra interpretação – não podem deixar de estar compreendidas as regras onde se compendiem os pressupostos de admissibilidade de recurso das decisões administrativas aplicativas de coima, já que em causa está então um ponto crucial de tal regime (cf. o artigo 268.º, n.º 3, da CRP, que garante aos interessados o recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quais- quer atos administrativos definitivos e executórios). Nesta perspetiva, é evidente que o apontado desvio ao regime geral do processo contraordenacional, desvio constante do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 21/85, se traduziu numa intromissão ilícita do Executivo na área que o artigo 168.º, n.º 1, alínea d) , da CRP, desde a revisão constitucional, vinha guardando para a Assembleia da República. Como em certa medida flui do discurso antecedente, a competência legislativa do Governo comporta um espaço interior (em que atua por direito próprio) e um espaço exterior (em que atua por delegação da Assembleia da República). In casu , todavia, o Executivo exercitou a sua competência nesse espaço exterior, mas sem que se verificasse a condição de que dependia a legitimidade de tal exercício: a autorização parlamentar. É exato que formalmente o Decreto-Lei n.º 21/85 foi emitido pelo Governo no uso da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 25/84, de 13 de julho. Contudo, não se prevendo em tal autorização a possibilidade de alte- ração, em qualquer grau, do regime geral do processo contraordenacional, de concluir é, em última instância, que o Governo, em níveis substanciais, e pelo que se reporta à norma do artigo 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 21/85, agiu a descoberto (tanto monta a não invocação de autorização legislativa, como a invocação de autorização que não cobre o instituto sobre o qual se legisla). A inconstitucionalidade orgânica de toda a norma do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 21/85 – e já não só do segmento normativo realmente desaplicado – é assim incontestável.”
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