TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018
514 Código da Estrada (que determina que caso o agente da autoridade não consiga identificar o autor da contra- -ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o corres- pondente processo), firmando que tal normativo apenas estabelece uma presunção ilidível. Ali se escreveu, além do mais, que: “De facto, como acontece no presente caso, não é aceitável concluir que uma norma como a do n.º 1 do artigo 152.º do Código da Estrada, que estabelece a possibilidade de a responsabilidade contraordenacional, em determinadas circunstâncias, ser atribuída ao proprietário ou possuidor de um veículo, possa ser interpretada no sentido de abranger situações em que está provado nos autos não só que o arguido, à data da infração, já não era proprietário ou possuidor do veículo – embora o seu nome constasse ainda do registo, mas também que foi um ter- ceiro, devidamente identificado, o infrator. Interpretar o mencionado artigo 152.º, n.º 1, em termos de considerar responsável quem não é proprietário ou possuidor, apenas porque como tal consta do registo, quando está provado, ainda, que não foi esse o infrator, mas sim outro, devidamente identificado, é imputar a tal normativo um sentido desrazoável – um sentido que o intérprete só extrai, se desrespeitar, na interpretação, o dever de presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil). Com efeito, como o Tribunal Constitucional tem decidido, nomeadamente na numerosa jurisprudência sobre a responsabilidade criminal de diretor de periódico (cfr., Acórdãos n. os 63/85, 447/87 e 135/92, publicados, respetiva- mente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º Vol., pág. 503, 10.º vol., pág. 547 e 21.º Vol. pág. 541, e Acórdão 922/96, disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm ) e no Acórdão n.º 252/92, (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22.º Vol., pág. 723), a existência de presun- ções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis». Ora, no caso presente, a sobredita interpretação conforme à Constituição não se afigura possível, pois a norma contida no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006 – por reporte ao prazo previsto no n.º 1, cujo teor é, aliás, claramente inspirado no sobredito artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada – é expressa ao fazer precludir “definitivamente” a possibilidade de ilidir a presunção decorrido aquele prazo. É certo, como já se afirmou, que em matéria das contraordenações o legislador se socorre muitas vezes de presunções, justificadas por razões de praticabilidade e efetividade da sanção. No entanto, ao ser afastada a possibilidade de prova em contrário, como se verifica no presente caso, as presunções inilidíveis aproximam- -se da figura das ficções legais, através das quais o facto ficcionado é definitivamente fixado sem que se con- sidere sequer a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa. Estabelece-se, assim, uma presunção inilidível da prática da contraordenação. Resta saber se tal presun- ção entra em confronto com o princípio da culpa, com a dimensão que o mesmo reveste na jurisprudência constitucional em matéria de contraordenações. 11. Já referimos que o conceito de culpa em matéria de contraordenações reveste um significado especí- fico, podendo ser compatível quer com situações excecionais de transmissibilidade da responsabilidade, quer com um conceito amplo de autoria. Porém, nos casos de transmissão da responsabilidade já anteriormente analisados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, pré-existia uma conexão objetiva entre o sujeito passivo responsável pela contraor- denação e os sujeitos responsáveis pelo pagamento da coima, fosse ela uma conexão orgânica ou contratual, tendo sido, no âmbito da atividade desenvolvida pelo organismo em causa ou à qual se destinava o contrato, que foi praticada a contraordenção. Referiu-se, para o efeito, no acima citado Acórdão n.º 201/14: “Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio , ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a com- pressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo”.
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