TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

497 acórdão n.º 335/18 7. No requerimento de interposição de recurso, o Ministério Público, em linha com a fundamentação da decisão recorrida, avança como causa de pedir os mesmos parâmetros de constitucionalidade, de índole material, mobilizados pelo tribunal a quo. Todavia, nas suas alegações, para além de se pronunciar – negativamente – quanto à verificação dos vícios geradores de inconstitucionalidade material invocados na decisão recorrida, o recorrente Ministério Público aduz um novo fundamento, de natureza orgânica, por infração da reserva de competência legislativa parlamentar estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e d), da Constituição. Estando o Tribunal, como emerge do artigo 79.º-C da LTC, cingido nos seus poderes de cognição à norma a que a decisão recorrida tenha efetivamente recusado aplicação, mas não aos fundamentos por que o foi, não existe obstáculo a que se passe a conhecer da existência do apontado vício orgânico. 8. Entende o recorrente que, na medida em que o Governo, no âmbito da atuação regulatória no setor da saúde, se afastou da solução decorrente do regime geral das contraordenações quanto ao efeito a atribuir ao recurso, procedeu a «alteração radical do regime geral em matéria fundamental», sem a devida credencial parlamentar. Efetivamente, de acordo com o artigo 165.º, n.º 1, alínea d) , da Constituição, o regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo tem inscrição reserva relativa de competên- cia legislativa da Assembleia da República. A norma em apreço foi editada pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa geral, prescrita no artigo 198.º, n.º 1, alínea a) , da Constituição, e não ao abrigo de lei de autorização legislativa, não decorrendo, note-se, da lei-quadro das entidades reguladoras estipulação que se possa reconduzir positivamente à disciplina processual do efeito do recurso judicial. E, como se disse já, nos vários decretos-leis emitidos pelo Governo em execução da referida lei-quadro, encontram-se soluções normativas diversas, tanto no sentido de acolher como regra o regime meramente devolutivo (ERS e AMT), como no sentido de remeter para o regime geral das con- traordenações, decorrente do decreto-lei n.º 433/82, que acolhe, por seu turno, o efeito suspensivo estipulado no ordenamento penal [artigo 408.º, n.º 1, alínea a), do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO]. Haverá então que determinar se a matéria do efeito suspensivo da impugnação judicial de decisão admi- nistrativa que condena em coima se inclui ou não no âmbito do «regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo». A resposta a essa questão é afirmativa. Na verdade, para além da referida remissão para o regime penal, o diploma de enquadramento do direito de ordenação social não deixou de integrar disciplina que tem implícita a opção fundamental pelo efeito suspensivo da impugnação judicial, vedando a execução da decisão administrativa sancionatória em caso de impugnação previstos no artigo 59.º do RGCO. É o que decorre do artigo 58.º do RGCO, onde se estipu- lam os requisitos a que deve obedecer a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias, sendo imposta a explicitação, no texto da própria decisão, que a condenação apenas se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada [n.º 2, alínea a) ] e que o termo inicial do prazo para pagamento da coima apenas ocorre «após o caracter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão» [n.º 3, alínea a) ]. Temos, então, que o legislador governamental, ao estipular como regime-regra da impugnação judicial o efeito devolutivo, veio regular matéria coberta pelo regime geral do processo contraordenacional, que alterou no âmbito regulatório da saúde sem que se encontrasse credenciado por autorização parlamentar, infringindo desse modo a reserva relativa de competência da Assembleia da República, estabelecida pela alínea d) do artigo 165.º da Constituição. 9. Idêntico vício de inconstitucionalidade orgânica deve ser afirmado quando se perspetiva a alínea b) do mesmo artigo 165.º da Constituição, face à restrição que solução normativa em equação acarreta ao fun- cionamento do princípio da presunção de inocência, inequivocamente assegurado no domínio sancionatório contraordenacional pelo artigo 32.º, n. os 2 e 10, da Constituição.

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