TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018
346 outras palavras, teve de escrutinar a solução legal à luz do princípio da proibição do excesso − submetendo-a, com especial saliência, ao «teste» da proporcionalidade em sentido estrito. E a conclusão a que chegou foi a de que esse equilíbrio se verificava, ou seja, que a solução não era desproporcional. Atente-se no seguinte trecho do Acórdão n.º 446/10: «[O] início de contagem não se dá por referência ao momento de verificação de um evento externo (o nasci- mento do filho, por exemplo, como noutras legislações), mas só se produz com a cognição, na esfera subjetiva do marido da mãe, de factos indiciadores da sua não paternidade. E note-se que se exige o efetivo conhecimento desses factos, não se contentando a lei com a sua cognoscibilidade. Só quanto ao alcance negatório do vínculo biológico que seja de conferir a esses factos está o intérprete habilitado a formar um juízo objetivo (quanto à possibilidade de, a partir deles, se concluir pela não paternidade). Este regime autoriza a atribuir valor significante à inércia do pai presumido, em sentido abdicativo do direito a impugnar, ou, no mínimo, a dirigir-lhe uma imputação de autorresponsabilidade. Com a fixação de um termo inicial subjetivo (logo, acolhedor das variáveis casuísticas) e a não consagração de um prazo máximo objetivo fica garantido o que, pelo menos neste âmbito, é essencial: a concessão de uma oportunidade real ao pretenso pai de averiguar, pelos trâmites processuais adequados, se o vínculo corresponde à realidade biológica, e de se libertar dele, em caso negativo. Se lhe chegam ao conhecimento (em qualquer momento) dados que lhe permitiriam duvidar seriamente da existência de um vínculo natural e ele nada faz, em prazo legal que só decorre a partir desse momento e possa ser tido de duração suficientemente adequada, sibi imputet, extinguindo-se, por força desse comportamento conscientemente omissivo (não pelo decurso de um prazo objetivo), o direito de impugnar a presunção de pater- nidade.» Crê-se que esta argumentação é cogente e que é aplicável, mutatis mutandis , à questão de constitucio- nalidade colocada nos presentes autos. O prazo subjetivo de três anos é uma solução razoável para a colisão dos direitos do impugnante e do filho. A existência de prazo – e de um prazo relativamente curto – tem por fundamento o interesse do filho na estabilidade familiar e na proteção durante a infância; e a natureza sub- jetiva do prazo tem por fundamento o interesse do impugnante na afirmação da verdade biológica, que não poderia ser acautelado de outra forma. O que a decisão recorrida preconiza é um regime em que a impugnação da paternidade é inviabilizada, ou está sujeita a um prazo absoluto, nos casos em que se verifica posse de estado, surgindo esta, neste con- texto, não na veste tradicional de índice de filiação biológica, mas como expressão de paternidade «sócio afetiva» e facto interditivo de impugnação da paternidade. É uma solução afim da consagrada, por exemplo, no artigo 333.º do Código Civil francês. Um regime desse tipo tem a inegável vantagem de eliminar a grande incerteza associada a um prazo subjetivo. Faz pender notoriamente a balança dos interesses para o lado do filho, com prejuízo para a oportunidade real do marido da mãe (ou do perfilhante) dissolver o vínculo jurídico, nos casos – seguramente comuns – em que a verdade biológica é uma dimensão essencial da sua identidade e do seu projeto paternal. Não é essa a solução do direito da filiação português, nem a de outros sistemas jurídicos (na Alemanha, por exemplo, o n.º 1 do § 1600b do BGB estabelece um prazo subjetivo de dois anos para a impugnação da paternidade). O legislador quis salvaguardar os interesses legítimos do impugnante, uma opção reforçada com a aprovação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que veio alargar os prazos de caducidade nas ações de estado. Note-se, aliás, que esta alteração legislativa surgiu na sequência da jurisprudência constitucional que censurou o regime anterior, sobretudo no domínio da investigação da paternidade, por conceder proteção insuficiente aos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (vide, entre muitos outros, os Acórdãos n. os 486/04, 23/06 e 609/07); inscreve-se na tendência geral de «acentuação, na ordem jurídico-constitucional e na consciência coletiva, de valores da personalidade» (Acórdão n.º 446/10). Por outro lado, quando o impugnante é o marido da mãe (ou, a pari, o perfilhante) – precisamente a hipótese contemplada pela norma sindicada no presente recurso –, os laços «sócio afetivos», desligados do pressuposto
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