TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

345 acórdão n.º 308/18 que o estado pessoal de alguém não esteja amputado desse dado essencial. Daí, além do mais, a consagração da averiguação oficiosa de paternidade (artigos 1864.º e seguintes).» A relativa propensão da paternidade estabelecida por reconhecimento voluntário para divergir da ver- dade biológica – sobre a qual recai um interesse público −, pode servir para justificar alguma diferença entre o regime da impugnação da paternidade presumida e da perfilhação. É, todavia, um interesse demasiado débil e difuso para justificar a existência de soluções legais radicalmente divergentes – demasiado artificioso para afastar, por si só, a forte e fundada suspeita de discriminação que recai sobre a lei.  Em todo caso, há um argumento adicional que é decisivo nesse sentido. O facto de as modalidades de estabelecimento da paternidade encerrarem graus diversos de probabilidade de correspondência com a verdade biológica é inteiramente imputável ao próprio legislador, que admite a perfilhação sem qualquer controlo prévio – judicial ou administrativo – da verosimilhança da declaração. A alegação de que essa opção é praticamente inevitável era cogente no século XIX, pelas razões referidas anteriormente, e manteve- -se mais ou menos aceitável numa época em que a prova da paternidade era difícil e incómoda. Mas perdeu toda a força numa época em que a prova da paternidade biológica pode ser determinada através de métodos tecnicamente seguros e simples de administrar – os testes de ADN −, como o Tribunal Constitucional tem vindo a sublinhar de modo reiterado na sua jurisprudência mais recente sobre prazos para intentar a ação de investigação da paternidade (vide, por exemplo, os Acórdãos n. os 486/04, 23/06 e 401/11). Ora, não se pode aceitar uma situação de facto gerada exclusivamente por uma decisão dispensável e discutível do legislador, conjugada com um vago interesse público, como justificação única de uma diferença de tratamento substan- cial entre dois grupos de indivíduos num domínio particularmente sensível. Por tudo quanto se disse, impõe-se a conclusão de que a norma extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do Código Civil, que estabelece que a ação de impugnação da perfilhação pode ser intentada pelo perfilhante a todo o tempo, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento. Firmado este juízo, torna-se inútil a apreciação da constitucionalidade da mesma norma com base no segundo dos fundamentos invocados na decisão recorrida para recusar a sua aplicação nos autos. 11. Cabe agora apreciar a constitucionalidade da norma, extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, que prevê a impugnabilidade da paternidade pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados a partir do conhecimento das circunstâncias que motivam a propositura da ação. Recorde-se que o tribunal a quo recusou a aplicação da norma, por entender que, ao fixar um prazo subjetivo, relativo à pessoa do impugnante − prazo cujo termo inicial é incerto, podendo ter lugar muitos anos volvidos sobre o momento do estabelecimento da filiação −, sacrifica o interesse do filho na estabilidade da filiação consolidada no plano social e afetivo. O Tribunal Constitucional apreciou a constitucionalidade dessa norma, no Acórdão n.º 446/10, con- cluindo no sentido da não inconstitucionalidade. Já no Acórdão n.º 589/07, tinha apreciado a constitucio- nalidade da norma acolhida na redação anterior da lei, nos termos da qual o prazo de impugnação era de dois anos, também aí a não julgando inconstitucional – decisão que viria a ser reiterada nos Acórdãos n. os  593/09 e 179/10. Sucede que a questão colocada nesses recursos era diametralmente oposta à suscitada, a propósito da mesma solução legal, pela sentença ora recorrida: era a questão da constitucionalidade da perempção, ao fim de certo prazo, do direito de impugnação da paternidade pelo marido da mãe. Isto é, ao passo que ali estava em causa a restrição (ou, mais precisamente, o défice de proteção), operada através da caducidade da ação, dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade do impugnante, aqui está em causa a restrição do direito à família e à proteção na infância através da consagração do direito do marido da mãe a impugnar a paternidade no prazo de três anos contados a partir de um termo incerto. Porém, a oposição dos problemas é mais aparente do que real. Nos citados arestos, o Tribunal Constitu- cional teve de apreciar se as soluções legais refletiam uma ponderação razoável de interesses contrapostos. Por

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