TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

343 acórdão n.º 308/18 diretamente interessadas), põe em destaque o relevo que o legislador confere ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio. Na perspetiva do legislador, nas situações de paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar explicam que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade (Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit. , pág. 210); ao contrário, a descoberta da verdade é erigida em interesse público, numa área de filiação em que se não coloca em perigo a estabilidade da família legalmente constituída, como ocorre em relação à impugnação da perfilhação.» O trecho transcrito aflora dois fundamentos distintos, se bem que inteiramente convergentes no seu sentido, para a diversidade de regimes de impugnação da paternidade presumida e do reconhecimento voluntário − fundamentos largamente gerados pela reciclagem ideológica dos lados negativo e positivo da justificação tradicional. Por um lado, partindo-se do princípio de que a presunção de paternidade do marido da mãe opera num contexto familiar estável e duradoiro – a família conjugal –, em que se insere naturalmente a filiação, ao con- trário do reconhecimento voluntário, que não pressupõe qualquer comunhão de vida entre os progenitores, conclui-se que a impugnação da paternidade presumida segundo a regra pater est… tem consequências na paz familiar que não encontram correspondência nos casos de impugnação da perfilhação. Trata-se, aqui, do lado negativo da distinção, isto é, do facto de não valerem no domínio da perfilhação as razões que explicam a imposição de prazos de caducidade para a impugnação da paternidade presumida, designadamente pelo marido da mãe. Esta é a principal razão invocada no aresto citado para a diferença de regimes. Por outro lado, o interesse público na tutela da verdade biológica projeta-se de modo diverso no domínio da paternidade presumida e do reconhecimento voluntário. O facto de a mãe ser casada é um indício forte de que o marido é o progenitor da criança nascida na constância do matrimónio, atentos os deveres e os usos de coabitação e de fidelidade dos cônjuges; a presunção encerra, assim, uma elevada probabilidade de correspon- dência com a verdade biológica. Pelo contrário, o reconhecimento voluntário consubstancia-se num ato livre e pessoal do perfilhante (artigo 1842.º do Código Civil), que a lei presume corresponder ao cumprimento de um dever de consciência do progenitor. Por razões históricas já referidas – poupar o perfilhante ao incómodo de um controlo prévio da verosimilhança da declaração e incentivar a perfilhação de filhos nascidos fora do casamento −, o reconhecimento voluntário não encerra qualquer indício objetivo de correspondência com a verdade bio- lógica. Ora, a imprescritibilidade do direito de agir e a atribuição de legitimidade ampla para impugnar podem ser entendidos como formas de compensar, ex post, a ausência de mecanismos que, ex ante , assegurem razoavel- mente aquela correspondência. Trata-se, aqui, do lado positivo da distinção, isto é, do facto de as soluções legais adotadas no domínio da impugnação da perfilhação terem uma razão de ser específica, que não se aplica aos casos de impugnação da paternidade presumida do marido da mãe. 10. Apesar deste esforço de reconstrução racional, constata-se que nenhum dos fundamentos invocados para explicar a divergência de regimes é suficiente para resistir a um controlo rigoroso baseado no princípio da igualdade. 10.1. O primeiro fundamento – a tutela da paz familiar −, assenta num pressuposto sociológico que não tem, nos dias de hoje, a menor aderência à realidade. Segundo dados do PORDATA ( www.pordata.pt ) , o número de divórcios por 100 casamentos foi de 8,5, em 1977, e de 69,0 (valor provisório), em 2016 (68,9, em 2010; 74,2, em 2011; 73,7, em 2012; 70,4, em 2013; 69,9, em 2014; e 72,2, em 2015). Perante estes números, é insustentável manter a suposição – perfeitamente razoável na década de setenta do século passado − de que a paternidade baseada na presunção matrimonial se insere num contexto familiar estável e duradoiro; com grande

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