TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

342 Assim, ao passo que o Código Civil, na versão de 1966, reservava o direito de ação ao marido da mãe (artigo 1817.º) e estabelecia a caducidade do direito de ação 120 dias após o nascimento do filho, já na versão pos- terior ao Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, o mesmo Código Civil atribuiu legitimidade para impugnar ao filho, à mãe e, a requerimento de terceiro que se declare pai, ao Ministério Público (artigo 1839.º, n.º 1), ao mesmo tempo que, no que respeita ao marido, estabeleceu um prazo de dois anos para propor a ação (três anos, após a entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril), contados a partir do conhecimento das circunstâncias de que possa concluir a sua não paternidade biológica [artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) ]. Estas modificações refletem a erosão da conceção patriarcal da família e a importância crescente da «verdade biológica».  Que razões podem ter ditado, no novo contexto social e político, a preservação das opções fundamen- tais de regime em matéria de impugnação da perfilhação, nomeadamente no que respeita ao prazo para o perfilhante intentar a ação correspondente?  É possível discernir duas razões para a manutenção do regime tradicional: a tutela da paz familiar, nomeadamente a do filho, mas também a dos cônjuges; e a tutela da correspondência entre a filiação jurídica e a verdade biológica. A matéria foi extensamente abordada, como obiter dictum, no Acórdão n.º 589/07, que se pronunciou sobre a constitucionalidade do prazo de caducidade para o marido da mãe impugnar a paternidade: «No que se refere à ação de impugnação de paternidade – que visa a impugnação da paternidade presumida do filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe –, o artigo 1842.º do Código Civil, não só amplia o critério de legitimidade, uma vez que permite que a ação possa ser proposta autonomamente pelos diversos titu- lares da relação jurídica (o marido, a mãe e o filho), como também estabelece prazos de diferente duração e modo de contagem. O marido da mãe beneficia de um prazo de 2 anos, contado da data em que teve conhecimento de factos ou circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, e, portanto, sem qualquer limite objetivo. A mãe do menor dispõe do mesmo prazo de 2 anos, mas contado do facto objetivo do nascimento, pressupondo o legislador, naturalmente, que a mãe do menor não poderá razoavelmente ignorar a inexistência do vínculo bioló- gico por parte do marido. O filho poderá propor a ação no prazo de 1 ano, que se conta a partir do momento em que atingiu a maioridade ou a emancipação ou, uma vez adquirida essa situação jurídica, a contar do conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se não ser o impugnante filho do marido da mãe. Por sua vez, para a ação de impugnação da perfilhação – visando a impugnação do ato jurídico de reconheci- mento de filho não nascido na constância do matrimónio –, o artigo 1859.º prevê um regime aberto de legitimi- dade ativa e de imprescritibilidade da ação, em que se destacam os seguintes aspetos: (a) a impugnação tem como fundamento a falta de correspondência à verdade no ato de perfilhação (e, portanto, a inexistência de uma filiação biológica); (b) a ação poderá ser proposta a todo o tempo, e mesmo depois da morte do perfilhado; (c) tem legiti- midade para a propor o perfilhante, o perfilhado, o Ministério Público, e qualquer pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da ação, aqui se incluindo as pessoas que sejam prejudicadas nos seus direitos suces- sórios com o chamamento do perfilhado à herança do perfilhante e quaisquer parentes do perfilhante que, inde- pendentemente da sua posição como seus herdeiros, tenham interesse em afastar o perfilhado da família comum. (…) Assiste-se, por conseguinte, no âmbito da impugnação da perfilhação, a um alargamento da legitimidade ativa ao Ministério Público e a pessoas que tenham um mero interesse moral na procedência da pretensão (bem como a própria inexistência de um prazo de caducidade para a propositura da ação), que é bem demonstrativo do interesse público de que se reveste, na área da filiação fora do casamento, a regra da coincidência da filiação com a realidade biológica da procriação (neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1995, pág. 267). A diversidade de regimes, acabada de expor, e, em especial, o confronto da solução legal prevista para a impug- nação da perfilhação com os critérios mais restritivos do artigo 1842.º (em que se mantém a regra da caducidade do direito de impugnação da paternidade presuntiva e se restringe o direito de ação ao núcleo de pessoas mais

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