TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

341 acórdão n.º 308/18 tinham razões – nesta matéria – para opor ao desejo singelo, vulgar, e talvez só aparente, de reconhecer a “verdade verdadeira” [biológica]». ( Idem , p. 436).» Com interesse para a genealogia do regime da impugnação da perfilhação, escreveu ainda o mesmo autor: «A ideia de facilitar o reconhecimento dos filhos naturais não teve, em 1806, o mesmo conteúdo que tem na segunda metade do século vinte. (…) [P]ode supor-se que a vontade de facilitar o reconhecimento dos filhos naturais subordinava-se à prevalência da autonomia da vontade do pai – que repudiaria mais do que hoje uma indagação prévia acerca da verdade biológica ou, até, a necessidade do consentimento da mãe ou de uma autori- dade administrativa qualquer para garantia sumária da veracidade do ato. Por outro lado, não pode julgar-se que o respeito da verdade biológica teve sempre a mesma importância nos sistemas latinos. (…) [É] razoável admitir que a legitimidade muito vasta tenha sido realmente pensada em favor dos interesses pecuniários dos herdeiros ou, em algum caso, para defesa de um nome ilustre, mais do que para defesa do princípio da verdade biológica. Aliás, os sistemas do século dezanove negavam com firmeza, a vários propósitos, a revelação da verdade biológica, quando privilegiavam outros interesses; e só ultimamente se vem reconhecendo a descoberta da verdade biológica do parentesco como um imperativo social ao ponto de se atribuir uma competência específica aos órgãos da administração.» ( Ibidem , p. 432, nota 57). A informação transmitida por estes excertos corrobora a suspeita de que a causa profunda das diferenças substanciais entre o regime da impugnação da paternidade presumida e da paternidade estabelecida por per- filhação era a defesa da integridade moral e patrimonial da família tradicional, perante a qual os filhos nasci- dos fora do casamento – e por isso, «ilegítimos» − eram olhados com a maior desconsideração e desconfiança. Por um lado, as poderosas razões que, no imaginário familiar oitocentista – dinástico, patriarcal e mora- lista −, depunham contra a impugnação da paternidade, não obstavam à procura da «verdade biológica» no domínio da filiação ilegítima; tratava-se, aqui, do lado negativo da distinção, isto é, da irrelevância, no domínio da perfilhação, das razões subjacentes ao regime tradicionalmente muito restritivo da impugnação da paternidade presumida do marido da mãe. Por outro lado, a intensa valorização da integridade do património e do nome de família justificavam a mais ampla consagração da possibilidade de impugnar a paternidade voluntária, tanto mais que esta depen- dia unicamente – para salvaguarda da honra do perfilhante e incentivo à perfilhação de filhos ilegítimos – de um ato livre e pessoal, e que era comuns nos países latinos praticarem-se «perfilhações de complacência» (vide Guilherme de Oliveira, op. cit. , p. 421); tratava-se, aqui, do lado positivo da distinção, isto é, do facto de existir uma razão forte para estabelecer um regime muito aberto de impugnação no domínio da perfilhação. É claro que, explicada nestes termos, a solução legal da imprescritibilidade da ação de impugnação da perfilhação intentada pelo perfilhante é liminarmente proibida pelo princípio da igualdade, na vertente de proibição da discriminação e, em especial, de proibição da discriminação de filhos nascidos fora do casa- mento. Todo o regime, na sua encarnação originária, repousava num preconceito contra os filhos «ilegítimos» e tinha por finalidade mais ou menos ostensiva discriminá-los (ou – o que é dizer o mesmo pela via oposta – de privilegiar os filhos «legítimos»). 9. Temos ainda assim de admitir a possibilidade de este regime, pesem embora as suas origens, desempe- nhar hoje uma função diversa e legítima no direito da filiação português. O contrário seria incorrer na deno- minada «falácia genética». O facto de as disposições que o integram não terem sido alteradas, pelo menos no que respeita às características básicas da imprescritibilidade e da legitimidade ampla, com a Reforma de 1977 – que alterou de modo muito vasto e significativo o direito da família, em larga medida adaptando-o a imperativos constitucionais −, dá indicações importantes nesse sentido. Note-se que o regime da impugnação da paternidade presumida, pelo contrário, sofreu profundas alte- rações, quer no que respeita à legitimidade para impugnar, quer no que respeita a prazos de caducidade.

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