TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

340 Porém, do ponto de vista constitucional, esta compreensão é intoleravelmente estreita. Não estando a constituição da paternidade, em qualquer das suas modalidades típicas, dependente da prova direta da progenitura, mas da operação de presunções legais (entre as quais avulta a regra pater est …) ou da vontade individual (no caso da perfilhação), os filhos nascidos fora e dentro do casamento são aqueles que a ordem jurídica reputa como tais; mesmo nos casos, relativamente excecionais, em que a paternidade é estabelecida por reconhecimento judicial, são aplicáveis presunções legais (as do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil) e as regras comuns de apreciação da prova (n.º 2). É precisamente por isso – por a progenitura ser presumida ou suposta, mas não diretamente estabelecida, no momento da constituição da paternidade – que é justificá- vel e até imprescindível a existência de regimes de impugnação. Daqui decorre que os filhos nascidos dentro do casamento são aqueles cujo pai é o marido da mãe – ou seja, os que beneficiam da presunção legal pater est … – e os filhos nascidos fora do casamento são aqueles cuja paternidade é estabelecida por meio de perfilhação ou reconhecimento judicial; e isto independentemente da correspondência, em qualquer um dos casos, entre a filiação jurídica e a biológica. De resto, relevando a proibição constitucional da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento da distinção antiga e estig- matizante entre filhos legítimos e ilegítimos («bastardos»), numa época em que a prova direta da progenitura era, não apenas pouco comum, mas cientificamente impossível, não se pode duvidar do seu alcance alargado. Ao consagrar regimes diversos de impugnação, pelo suposto pai, da paternidade presumida e da perfilhação, a lei está inteiramente na sombra da suspeita de discriminação acolhida no texto constitucional. Tal reclama, como vimos, um exercício robustecido de controlo judicial. «8. O artigo 1859.º do Código Civil tem o seguinte teor: Artigo 1859.º (Perfilhação) 1. A perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado. 2. A ação pode ser intentada, a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado, ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência ou pelo Ministério Público. 3. A mãe ou o filho, quando autores, só terão de provar que o perfilhante não é o pai se este demonstrar ser verosímil que coabitou com a mãe do perfilhado no período da conceção.» Com a exceção do n.º 3 – introduzido pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro −, aliás irrele- vante para os presentes efeitos, estas disposições mantêm a redação de 1966, as quais apenas inovaram rela- tivamente ao Código de Seabra no que diz respeito à imprescritibilidade da impugnação da perfilhação pelo filho. «O direito português sobre a impugnação da paternidade estabelecida por reconhecimento voluntário – escrevia em 1984 um jurista português que estudou o tema com profundidade – corresponde ao modelo francês do século dezanove, e tem mantido uma constância notável que nem a Reforma de 1977 abalou. A legitimidade muito ampla e a imprescritibilidade da ação constituem as notas mais significativas do regime.» (Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Reimpressão, Coimbra: Almedina, 1998, p. 430). Mais adiante, afirma o seguinte: «Contrasta – desde sempre contrastou – com as normas que se ocupam da paternidade dentro do matrimónio. Estas resultaram sempre de um compromisso entre o respeito pela verdade biológica e o interesse do filho que se identificava com a manutenção do estatuto adquirido; faziam mesmo prevalecer a segurança jurídica deste bene- fício. Pelo contrário, o vínculo paternal fora do casamento nunca foi regulado com atenção a valores semelhantes. Creio mesmo que a proteção exclusiva da verdade biológica – tão anacrónica no princípio do século dezanove – foi o que sobrou da falta de consideração legal pela família sem matrimónio, pelo estado de filho ilegítimo e pelo interesse eventual do filho na estabilidade da sua condição; os legisladores do princípio do século dezanove não

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