TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

225 acórdão n.º 244/18 N) E uma Portaria, como um qualquer outro diploma legal, é certamente um ato de vontade e informado pela vontade do órgão competente para o emitir; mas a voluntariedade acaba aí; mal conclui a sua formação, o diploma atinge automaticamente e de imediato a maioridade plena libertando-se da tutela do seu criador e ficando sujeito às normais regras de interpretação de normas jurídicas; acresce, se por absurdo assim não se entendesse, que num sistema jurídico como o nosso, mesmo em sede de direito privado o significado dos con- tratos ou de negócios jurídicos unilaterais está longe de ser uma função do império da letra e dos dicionários, concorrendo aí também considerações sobre o equilíbrio dos resultados, boa fé, abuso de direito, perspetiva sistemática, finalidade discernível das disposições, etc. O) Não se pode, pois, tratar a Portaria n.º 112-A/2011 como propriedade da AT, imune às regras gerais de inter- pretação das normas jurídicas. Não o é, nem o que ali está é menos normativo do que o que se pode encontrar no CPPT ou no RJAT. P) Mais ainda, a Portaria de adesão à arbitragem tributária é ela própria um ato normativo, formal e substancial- mente (as suas disposições são gerais e abstratas, compostas de previsão e estatuição), e no ponto que interessa aqui faz sua o que é, inquestionavelmente, mais uma norma jurídica, a constante do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT. Pelo que são as regras de interpretação das normas jurídicas que se lhe hão-de aplicar. Q) Acresce que, como já se referiu, a questão da interpretação do artigo 2.º, alínea a) , da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, não é privativa desta norma. Ela é muito mais antiga, e data, pelo menos, da aprova- ção do CPPT, onde consta o artigo 131.º do CPPT, para o qual remete o preceito da Portaria aqui em causa. K) Donde que se tenha dificuldade em compreender como, em face do meio paralelo à impugnação judicial que é a arbitragem tributária, e perante remissão pela Portaria de vinculação à arbitragem tributária para o artigo 131.º do CPPT, se pretenda, como não podia deixar de ser, receber esta norma na arbitragem, mas rejeitar o acquis jurisprudencial que a seu propósito se formou, e que nos diz que não obstante a sua formulação não é inimpugnável o ato de liquidação precedido do procedimento administrativo de revisão oficiosa. S) Ou seja, tendo a Portaria em causa remetido para a solução do artigo 131.º do CPPT, trazendo para a arbitragem essa norma, a AT pretende que, não obstante, não seria de acolher o acquis jurisprudencial que se formou a seu propósito e que entende que a mesma não exclui a impugnabilidade caso o procedimento administrativo prévio tenha sido o da revisão oficiosa. Não se percebe este corte: vem a norma, diz a AT, mas não vem a jurisprudência, e prática generalizada, sobre a norma. T) A pretensão da AT contraria todo o entendimento dos nossos Tribunais Superiores (e primeiras instâncias) em face do preceito, para o qual remete a Portaria n.º 112-A/2011, constante do citado artigo 131.º do CPPT. U) Tal pretensão, em coerência, afastaria o recurso ao próprio meio “impugnação judicial”, uma vez que mal se compreenderia que um mesmo preceito [o artigo 131.º do CPPT, diretamente, e o artigo 2.º, alínea a) , da Portaria n.º 112-A/2011, que o receciona / que para ele remete], incluindo na sua função, tivesse interpreta- ções opostas. V) Esta é, pois, literalmente, uma questão de unidade do sistema jurídico. W) E é-o não só por um prisma jurídico-formal, mas também por um prisma jurídico – material. Com efeito, atendendo-se à unidade do sistema jurídico não faz sentido que o processo matriz, o judicial tributário, possa ser usado para discutir a legalidade de atos de autoliquidação na sequência de indeferimentos de pedidos de revisão oficiosa (ou de reclamações graciosas), e o processo arbitral tributário, que tem por objetivo constituir uma opção ou alternativa paralela ao processo matriz, não possa ser usado quando em sede de autoliquida- ções o procedimento administrativo prévio tenha sido de um tipo (pedido de revisão oficiosa) e não de outro (reclamação graciosa). X) Também do ponto de vista da unidade do sistema jurídico num prisma jurídico-material, no prisma da coe- rência e da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (presunção de que o legislador tem reta intenção e é justo, por oposição a arbitrário), esta exclusão não faz qualquer sentido, não se apoia em qualquer fundamento racional, antes constituirá, a vingar, uma solução arbitrária ou, se se quiser, caprichosa. E é de presumir que o Estado, designadamente o Estado legislador, não age caprichosamente.

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