TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018
214 valor e a justa medida que tanto para as entidades adjudicantes como para os privados decorre das exigências (e das possibilidades) criadas pela contratação pública. […]”. Cumpre, ainda, salientar que, mesmo admitindo que, apesar de nem todos os procedimentos de con- tratação público serem concorrenciais, são eles concorrenciais na sua larga maioria (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros procedimentos de contratação pública, Coimbra, 2011, pp. 29 e seguintes), e tendo presente que o princípio da concorrência é um ‘princípio tronco’ do sis- tema da contratação pública, porque se prolonga em múltiplas ramificações, correspondentes a tantos outros princípios ou desenvolvimentos seus” ( ob. cit. , p. 185), o certo é que há uma distinção fundamental a fazer “[…] para bem situar o princípio da concorrência no seio do regime jurídico da contratação pública”, dis- tinção essa que “ consiste em autonomizá-lo das denominadas regras da concorrência, que têm como destinatários os operadores económicos e qualquer atividade que, enquanto tais, eles levem a cabo – as quais se encontram plasmadas nomeadamente nos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho. É a essas regras que se refere a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do Código , ao mandar excluir ‘as propostas cuja análise revele […a] existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência’, algo bem diverso da concorrência a que se referem os respetivos artigos 132.º/4, 140.º/3, 189.º/4, 239.º/3 e 252.º/2, nos quais o conceito ou princípio aparece claramente reportado à natureza aberta e competitiva do recurso ao mercado nos procedimentos de contratação pública. Bem o revela, por exemplo, o sentido da “pro- moção da concorrência” com que ele vem utilizado no artigo 49.º/1 do CCP [referem-se os autores à norma não na redação atual, emergente do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, mas à que decorria primeira versão, do Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho: “[a]s especificações técnicas, como tal definidas no anexo VI da Diretiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, e no anexo XXI da Diretiva n.º 2004/17/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, devem constar do caderno de encargos e são fixadas por forma a permitir a participação dos concorrentes em condições de igualdade e a promoção da concorrência. ”]. É evidente que haverá comunicações ou situações de confluência entre o princípio da concorrência, de um lado, e as regras da concorrência, de outro, por isso que existem proibições e condicionamentos concorrenciais específicos dos procedimentos da contratação pública – como é o caso, por exemplo, da proibição de o membro de um agrupamento apresentar isoladamente ou integrado noutro agrupamento uma proposta em concorrência com a daquele primeiro (artigo 54.º/2) – ligados à existência de um honeste agere ou vivere, que é afinal o apanágio das regras da concorrência vigentes no mercado, na vida económica” ( ob. cit. , pp. 191/192, itálico acrescentado). Sendo certo que as duas dimensões da concorrência convivem, até certo ponto, em sobreposição valo- rativa, não é menos certo que elas se podem e devem distinguir fundamentalmente e a norma do artigo 54.º do EPARAA aponta, de forma evidente, para apenas um desses sentidos. Expõe-se, deste modo, o que as alegações da USISM não colocam em devida luz: ao reduzir o sistema complexo de contratação pública ao interesse da concorrência (o que não reflete a pluralidade de interesses e objetivos desse sistema) e, acima de tudo, ao não distinguir a concorrência enquanto princípio da contra- tação pública relacionado “com a natureza aberta e competitiva do recurso ao mercado” ( ob. e loc. cit. ) das regras da concorrência, a USISM conduz a sua argumentação enviesadamente, como se a previsão do EPA- RAA (“funcionamento dos mercados regionais e da atividade económica” e “promoção da concorrência”) se (con)fundisse com o regime da contratação pública. Mas – como vimos – não é esse o caso. Nada autoriza a que se conclua que o legislador (Assembleia da República), ao aprovar a norma respeitante ao “funcionamento dos mercados” e à “promoção da concor- rência”, teve em vista o (diferente e mais complexo) regime de contratação pública, em que a concorrência surge com outro sentido e conciliada com outros interesses, num regime que deve respeitar interesses de concorrência, mas não visa diretamente regular a concorrência. Pelas razões expostas, deve tal norma do EPARAA interpretar-se como sendo referida às denominadas regras da concorrência – as regras que visam
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