TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 102.º volume \ 2018

195 acórdão n.º 233/18 32. Observa-se que, enquanto no regime anterior apenas estavam em causa regras especiais a observar na contratação pública definida no CCP, pretende-se agora, com o RJCPRAA, estabelecer um regime jurídico pró- prio para os contratos públicos celebrados no âmbito da Região e a definição da disciplina aplicável à contratação pública e ao regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo. 33. A questão que se coloca é, então, a de saber em que medida permite a ordem jurídica portuguesa que uma região autónoma aprove um regime próprio de contratação pública, com um conteúdo que, em vários passos, se afasta do código de âmbito nacional (o CCP), designadamente quanto à questão em discussão no recurso: o CCP exige que os concursos públicos sejam publicitados no Diário da República, enquanto o Decreto Legislativo Regional em apreço prevê que eles sejam anunciados no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores. 34. Tal como foi já apontado, tanto o CCP como o RJCPRAA pretendem transpor diretivas europeias. No caso do RJCPRAA, transpõe-se para o ordenamento jurídico regional a Diretiva 2014/24/EU. 35. O n.º 8 do artigo 112.º e a alínea x) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP atribuem às Regiões Autónomas o poder de realizarem a transposição de diretivas comunitárias para o ordenamento jurídico regional. 36. No entanto, tal competência para transpor os atos jurídicos da União Europeia para o território da região, é restrita às «matérias de competência legislativa própria» [cfr. a remissão para o n.º 4 do artigo 112.º da CRP e o artigo 40.º do EPARAA]. Como se referiu na decisão recorrida, citando Carlos Blanco de Morais [ Curso de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, págs. 561 e 562], «estamos perante uma competência legis- lativa regional de recorte puramente habilitante que permite às regiões transpor diretivas, mas não garante a trans- posição regional de todas as diretivas sujeitas a transposição na ordem jurídica portuguesa. Trata-se, assim, de um poder que necessariamente se articula e depende da morfologia das restantes competências legislativas regionais». 37. O poder regional de transposição das diretivas está limitado ao espaço geográfico regional e à configuração de cada uma das competências legislativas regionais em função das matérias vertidas em cada diretiva que se pre- tenda transpor. Assim, se a Região Autónoma tiver poderes próprios para legislar na matéria, igualmente poderá efetuar a transposição da diretiva europeia que incida nessa matéria [Jorge Bacelar Gouveia, A Autonomia Legislativa das Regiões Autónomas Portuguesas, Universidade Autónoma de Lisboa, 2012]. 38. Importa, então, apurar da competência legislativa própria das Regiões Autónomas e dos respetivos limites. 39. De acordo com o artigo 112.º da CRP, os decretos legislativos regionais são atos legislativos, tal como as leis e os decretos-leis. Na hierarquia normativa, a validade dos atos legislativos está apenas condicionada pela sua conformidade com os atos normativos de valor superior. Para além da Constituição e de outras normas que a ela própria se sobrepõem, os atos legislativos têm de respeitar as leis de valor reforçado: leis orgânicas, leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, leis que sejam definidas constitucionalmente como pressuposto normativo necessário de outras leis e leis que devam constitucionalmente ser respeitadas por outras. Os atos legislativos devem ainda respeitar as leis de bases que devam desenvolver e as leis de autorização legislativa ao abrigo das quais sejam proferidos. 40. Deve reconhecer-se que o CCP não é uma lei de valor reforçado nem uma lei de bases, pelo que não é um ato legislativo que, por si, parametrize a autonomia legislativa regional. 41. Mas os decretos legislativos regionais têm ainda outras limitações. 42. O artigo 227.º, n.º 1, alínea a) , da CRP atribui às Regiões Autónomas o poder de legislar, nos termos definidos nos respetivos estatutos, “no âmbito regional”, “em matérias enunciadas no respetivo estatuto político- -administrativo”, “e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. O mesmo se refere no artigo 112.º, n.º 4, da mesma Constituição, quanto ao conteúdo dos decretos legislativos regionais. 43. A recorrente invoca que o regime da contratação pública não está reservado aos órgãos de soberania. 44. É verdade que o regime da contratação pública não consta do elenco de matérias constitucionalmente reservadas, de forma explícita, à Assembleia da República ou ao Governo. Sendo uma área de competência legislativa concorrencial, seria legítimo à Região Autónoma produzir legislação neste domínio. No entanto, o Tribunal Constitucional, designada- mente nos seus Acórdãos n. os 258/07 e 26/09, tem entendido que, para além das reservas de competência constitucional- mente definidas, também se devem considerar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania todas as matérias

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