TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

99 acórdão n.º 225/18 Se o referido artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , visou resolver o problema genérico da admissibilidade das técnicas de PMA, o mesmo também deixa muito claro que tal solução normativa não reconhece um direito a toda e qualquer procriação possível segundo o estado atual da técnica, visto que exclui, à partida, as formas de procriação assistida lesivas da dignidade da pessoa humana (cfr., por exemplo, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. VII ao artigo 69.º, pp. 869-870). A determinação do que possa constituir uma lesão da dignidade da pessoa humana neste contexto surge, pois, como elemento indispensável para uma adequada compreensão daquela imposição constitucional de regulação. Nesse sentido, afirma-se no já citado Acórdão n.º 101/09: «O legislador constitucional não se limitou, como se vê, a impor um dever de regulamentar a procriação medi- camente assistida. Deu ainda uma referência normativa, uma indicação de princípio, a que o legislador ordinário se deverá submeter, ao exigir que a matéria seja regulada “em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana”. […]» Torna-se, assim, necessário determinar o sentido substancial que deve ser atribuído à menção da sal- vaguarda da dignidade humana, uma vez que dele depende a delimitação do espaço de livre conformação do legislador em matéria de regulação da PMA. Como mencionado, a gestação de substituição pressupõe o recurso a uma técnica de PMA heteróloga, diferenciando-se, depois, em virtude da utilização do corpo de outra mulher que não a beneficiária do processo (cfr. o Parecer n.º 87/CNECV/2016, n.º IV.4, p. 15). Ou seja, face ao artigo 8.º da LPMA, deve este Tribunal começar por controlar se o legislador, ao aprovar aquele preceito, respeitou os limites constitucionais que balizam a sua atuação neste domínio, nomeada- mente aqueles que decorrem da dignidade da pessoa humana. Nestes termos, a primeira, e fundamental, questão de constitucionalidade que se coloca a propósito da gestação de substituição é a de saber se, como sustentam os requerentes, os negócios jurídicos legalmente previstos que têm por objeto a utilização tem- porária do corpo de um ser humano (a gestante) para gerar outro (a criança a nascer por via de tal modo de procriação) não serão incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. 22. Não é demais salientar a importância estruturante e a função legitimadora da dignidade humana enquanto base da República: esta é um Estado de direito democrático porque baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular (artigos 1.º e 2.º da Constituição). Mas a segunda está subordinada à primeira; «não se lhe contrapõe como princípio com que tenha de se harmonizar, porquanto é a própria ideia cons- titucional de dignidade que a exige como forma de realização […A] dignidade da pessoa é axiologicamente primordial e, por isso, a vontade popular está-lhe juridicamente subordinada – não é outro, aliás, o signifi- cado da prevalência dos direitos fundamentais sobre a lei» (assim, vide António Cortês in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. III ao artigo 1.º, pp. 77-78; vide, igualmente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anot. VI ao artigo 1.º, p. 198, referindo-se à dignidade como “valor-limite”). Daí, também, a conexão entre a dignidade humana e o sistema de direitos fundamentais: este con- cretiza a juridicidade do Estado porque aquela é um dos critérios legitimadores do poder estadual. Assim, a dignidade da pessoa humana é o «étimo fundante da República e dos direitos fundamentais» (Acórdão n.º 121/10) e, por isso, «o sistema dos direitos fundamentais detém uma unidade de sentido, que se organiza em torno da ideia da dignidade das pessoas» (Acórdão n.º 465/12). Mas, considerando a dignidade da pessoa humana em si mesma, este Tribunal entende-a numa dimensão objetiva e autónoma: «Ao fazer um apelo ao princípio da dignidade da pessoa humana, no âmbito da procriação medicamente assistida, o preceito remete para o estabelecido no artigo 1.º da Constituição, onde se declara que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de

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