TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
98 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL regra, através de uma “ordem de parentalidade” ( parental order ), nos primeiros seis meses de vida do menor – sendo a gestante legalmente considerada como mãe até então. A figura jurídica da ordem de parentalidade constitui, assim, elemento fundamental para a solução das situações de gestação de substituição. Nestes termos, e apesar de a criança ser legalmente considerada filha da gestante após o nascimento, permite-se a posterior transferência, por via judicial, da parentalidade do menor para os beneficiários do contrato de gestação, uma vez verificado estarem cumpridos os pressupostos legais (por exemplo, pedido realizado nos primeiros seis meses após o nascimento da criança; esta deve encontrar-se a residir no Reino Unido, com o casal beneficiário, no momento em que o pedido é efetuado e no momento em que a ordem é emitida; é necessário o consentimento da gestante e do seu cônjuge, o qual, no caso da gestante, só é válido se emitido 6 semanas após o parto; finalmente, tem de haver comprovação judicial da inexistência de um contrato oneroso de gestação). Este modelo (do qual se aproximam as soluções de cinco dos treze Estados federados norte-americanos que admitem expressamente a gestação de substituição: Alabama, Califórnia, Flórida, Texas e Utah) consa- gra, pois, uma solução de compromisso, centrada em acautelar o superior interesse da criança neste com- plexo tipo de procedimentos, permitindo que esta possa ser juridicamente considerada como filha dos seus progenitores genéticos, que serão, em regra, as pessoas que para ela tinham, desde o primeiro momento, um projeto parental. É ainda um modelo que salvaguarda fortemente a posição da gestante, cujo consentimento esclarecido e consciente é exigido em todas as fases do processo. B.4. O modelo português de gestação de substituição à luz da dignidade da pessoa humana 21. Como se viu, o recurso à gestação de substituição é uma prática disseminada a nível mundial, suscitando interrogações no plano ético, bem como diversos problemas jurídicos. As exigências decorrentes da tutela dispensada aos direitos da criança no plano internacional e da proibição de mercantilizar o corpo humano ou as suas partes e a análise do respetivo enquadramento nos ordenamentos jurídicos de outros Estados permitem traçar um quadro elucidativo do tipo de questões axiológico-jurídicas associadas a tal modo de procriação. É um tema de fronteira e não consensual respeitante à delimitação das formas ética, cultural e socialmente aceites de procriar no âmbito do qual interesses até há pouco naturalmente harmoni- zados podem surgir em oposição. Daí não surpreender que nos ordenamentos que consagram expressamente a dignidade do ser humano como um bem fundamental inviolável – e hoje, nos termos do artigo 1.º da CDFUE, em conjugação com cláusulas abertas de direitos fundamentais ou com diretrizes de interpretação conforme (e sem prejuízo do âmbito de aplicação da mesma Carta previsto no seu artigo 51.º), tal vale não só para a própria União Europeia, como para a generalidade dos seus Estados-Membros –, se suscite o problema da compatibilidade de princípio da gestação de substituição – isto é, logo num plano conceptual do próprio instituto jurídico recortado segundo um determinado perfil –, com aquele valor. A questão pode colocar-se diretamente, com referência às soluções do ordenamento interno, ou indiretamente, a propósito de problemas como o do reco- nhecimento da filiação estabelecida no estrangeiro, como sucedeu, por exemplo, na Alemanha e em Itália (e, no mesmo plano de análise, mas sem referência imediata à compatibilidade com a dignidade humana, também em França). No que respeita a Portugal, a questão vem diretamente colocada no presente processo, uma vez que um dos parâmetros convocados para o controlo da constitucionalidade do artigo 8.º da LPMA é a dignidade da pessoa humana, prevista nos artigos 1.º e 67.º, n.º 2, alínea e) , da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, no entender dos requerentes, a gestação de substituição consubstancia uma inaceitável mercan- tilização do ser humano, quer no que respeita à gestante, cujo corpo se transformaria num objeto ao serviço dos beneficiários, quer relativamente à criança, que desde antes do nascimento seria objeto de um negócio jurídico.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=