TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
95 acórdão n.º 225/18 pour le compte d’autrui . Esta solução legal foi concebida na sequência de uma importante decisão da Cour de Cassation de 1990, confirmativa da nulidade de uma associação (denominada « Alma mater »), que se dedicava à intermediação de procedimentos de gestação de substituição. O tribunal considerou que os acordos pro- movidos por esta associação eram ilícitos, devido ao seu objeto, e contrários à ordem pública, por violarem o princípio da indisponibilidade do estado das pessoas. O Code Pénal, no seu artigo 227-12, primeiro parágrafo, criminaliza o incitamento ao abandono de uma criança, dispondo o seguinte: « le fait de provoquer soit dans un but lucratif, soit par don, promesse, menace ou abus d’autorité, les parents ou l’un d’entre eux à abandonner un enfant né ou à naître est puni de six mois d’emprisonnement et de 7 500 euros d’amende ». Esta solução visa dar resposta a uma realidade muito frequente em França. Com efeito, desde a década de 80 do século passado que se tem recorrido ao instituto da adoção para encobrir contratos de gestação de substituição, através de um expediente simples: uma mulher aceita ser inseminada com o esperma do beneficiário e compromete-se a exercer, após o nascimento da criança, o direito existente no ordenamento jurídico francês de não ser declarada como mãe da criança (système d’accouchement sous X) . Por sua vez, o beneficiário perfilha a criança e, após passar a deter as responsabilidades parentais, permite a adoção da mesma pelo seu cônjuge. Esta prática foi condenada pela Cour de Cassation , que, anulando a decisão recorrida, confirmou a decisão do tribunal de primeira instância de não autorizar a adoção de uma criança nestas condições ( Arrêt de 31 de maio de 1991, Processo 90.20105). Segundo a Cour de Cassation , aquele procedimento constitui uma deturpação do instituto da adoção e um atentado aos princípios da indisponibilidade do corpo humano e do estado das pessoas. A lei francesa é omissa no que respeita à determinação da filiação das crianças nascidas ao abrigo de con- tratos de gestação nulos. Perante o silêncio da lei, essa determinação tem vindo a ser feita pela jurisprudência. Com efeito, após a entrada em vigor das «leis bioéticas», os processos mais frequentes discutidos nos tribunais franceses neste âmbito têm incidido sobre casos em que os cidadãos, de nacionalidade francesa, recorrem à gestação de substituição em países em que a mesma é lícita, pretendendo os mesmos ver posteriormente reconhecida a filiação da criança no ordenamento jurídico francês. Num primeiro momento, a Cour de Cassation recusou a transcrição do registo de nascimento das crian- ças nascidas nestas circunstâncias, fazendo prevalecer o princípio da proibição da gestação de substituição sobre o superior interesse da criança, a fim de combater o “turismo reprodutivo”. Para tanto, aquele tribunal considerou que o reconhecimento de efeitos a um contrato de gestação implicaria uma violação de um prin- cípio essencial do direito francês – o princípio da indisponibilidade do estado das pessoas –, pelo que a recusa do reconhecimento da filiação decorrente desse contrato era legítima à luz da ordem jurídica internacional francesa ( Arrêt n.º 1285, de 17 de dezembro de 2008, e Arrêts n. os 369, 370 [ Mennesson ] e 371 [ Labassee ], de 6 de abril de 2011). Ainda assim, o tribunal não deixou de reconhecer que o não reconhecimento em França da filiação relativamente aos beneficiários do contrato de gestação não anulava a sua existência à luz do direito norte-americano nem impedia a criança de viver em França com o progenitor genético e o outro beneficiário. A mesma recusa de transcrição também foi justificada com o argumento de fraude à lei ( Arrêts n. os 1091 e 1092, de 13 de setembro de 2013, e n.º 281, de 19 de março de 2014). Tal oposição à transcrição dos registos de nascimento de crianças concebidas no estrangeiro através do recurso a contratos de gestação de substituição foi, todavia, condenada pelo TEDH (cfr. supra no n.º 11 a jurisprudência do TEDH relativa aos casos Mennesson, Labassee, Foulon e Bouvet ). Em consequência, a Cour de Cassation passou a entender que o recurso a um contrato de gestação de substituição, só por si, desig- nadamente por força dos aludidos princípios da indisponibilidade do estado ou da proibição de fraude à lei, não justifica, a recusa de transcrição; a transcrição do registo de nascimento de uma criança nascida no estrangeiro com recurso a um contrato de gestação onde se encontre estabelecida a filiação relativamente ao pai biológico deve ser admitida, desde que o ato estrangeiro seja formalmente regular e substancialmente verdadeiro, isto é, que não seja falsificado e os factos nele declarados correspondam à realidade ( Arrêts – da Assemblée plenière – n. os 619 e 620, de 3 de julho de 2015). Como foi notado no pertinente comunicado do próprio tribunal, os registos cuja transcrição estava em causa mencionavam, como pai, aquele que realizou
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