TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

90 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL sociedade francesa, como limitava a possibilidade de estas obterem a nacionalidade francesa e de serem titu- lares de direitos sucessórios perante a lei francesa. O problema era ainda agravado pelo facto de o beneficiário ser o progenitor genético das crianças em questão, o que fazia com que o não reconhecimento da relação de filiação entre os dois à luz do direito francês assumisse contornos particularmente prejudiciais para o superior interesse das crianças, na medida em que uma das componentes essenciais da sua identidade seria necessa- riamente afetada. Por conseguinte, o Tribunal concluiu que as decisões dos tribunais franceses de recusa de transcrição excediam a margem de apreciação do Estado francês na ponderação dos interesses em conflito, verificando-se uma violação do direito ao respeito da vida privada das crianças. O segundo conjunto de decisões respeita ao caso Paradiso and Campanelli c. Itália (Queixa n.º 25358/12), com origem nos tribunais italianos. Estava em causa um casal italiano que havia celebrado um contrato oneroso de gestação de substitui- ção na Rússia, prevendo a gestação da criança por uma mulher russa, com recurso ao material genético do beneficiário e de uma terceira dadora. Após o nascimento da criança, as autoridades russas lavraram uma certidão de nascimento, constando aquela como filha do casal beneficiário. Porém, quando os beneficiários requereram em Itália a transcrição da certidão de nascimento, as autoridades italianas não só recusaram o pedido, como iniciaram um inquérito penal contra aqueles, por falsificação de documentos e deturpação do estado civil. Após a realização de testes de ADN, comprovou-se que a criança não tinha afinal sido gerada com recurso aos gâmetas de nenhum dos membros do casal, o que motivou a sua retirada e posterior adoção por outra família. O caso foi objeto de queixa para o TEDH, que o apreciou em duas instâncias. Na primeira decisão, datada de 27 de janeiro de 2015, o TEDH centrou a sua análise na necessidade de ponderação dos interesses públicos e privados em conflito, tendo como referência o princípio fundamental do superior interesse da criança. Nestes termos, e no que respeita à primeira decisão emitida pelas autori- dades italianas (uma recusa de reconhecimento da certidão de nascimento emitida pelas autoridades russas e, consequentemente, da relação de filiação aí estabelecida), a Câmara de Julgamento considerou que as mesmas não tinham agido de forma desrazoável, na medida em que a criança não possuía qualquer ligação genética com os beneficiários. O mesmo entendimento não foi, porém, mantido a propósito da apreciação da decisão dos tribunais italianos de retirar a criança de casa dos beneficiários, tendo os juízes de Estrasburgo considerado que os interesses da criança não tinham sido devidamente equacionados, o que implicava a uma violação do artigo 8.º da Convenção. Esta decisão foi, todavia, revertida em 24 de janeiro de 2017, pela Câmara de Apelação ( Grand Cham- ber ) do TEDH, tendo a posição maioritária vencido por 11 votos contra 6. Em primeiro lugar, o Tribunal entendeu que não tinha existido verdadeiramente vida familiar entre os beneficiários e a criança, especial- mente devido à curta duração da vida em comum (6 meses em Itália e 2 meses na Rússia) e à inexistência de uma ligação genética entre os mesmos, pelo que o direito ao respeito da vida familiar não seria aplicável in casu (§§ 157 e 158). Os juízes consideraram, porém, que o direito ao respeito da vida privada seria aplicável ao caso, na sua vertente de direito ao respeito da decisão de os “pais intencionais” assumirem responsabilidades parentais e ao desejo de se desenvolverem por essa via, atenta a sua intenção genuína em serem pais e a existência de laços emocionais e afetivos com a criança (§ 163). Ou seja, a mera ausência de uma relação genética entre os pais intencionais e a criança (e, bem assim, a inexistência de uma relação familiar duradoura) não foi considerada um obstáculo à consideração da posição desses progenitores no âmbito de proteção do direito ao respeito da vida privada e familiar consagrado no artigo 8.º da CEDH. A partir daqui, o Tribunal apreciou se a afetação desse direito poderia ser justificada com base nos pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 8.º da CEDH: (i) tratar-se de uma ingerência prevista na lei; e (ii) constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para garantir certos bens fundamentais, em especial, a defesa da ordem pública e dos direitos e liberdades da criança (cfr. o § 177: o Tribunal considera legítima a vontade das autoridades italianas de reafirmarem a competência exclusiva do

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