TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
89 acórdão n.º 225/18 privados dos beneficiários e da gestante e os interesses públicos constitucionalmente relevantes, da operação de concordância prática a efetuar num momento, após o nascimento da criança, em que todo o processo decisório deve ter por propósito cimeiro a tutela do superior interesse da criança. O espaço de conformação dos Estados para procurar uma solução específica, consentânea com o seu particular quadro axiológico e valorativo, é substancialmente mais pequeno no segundo caso, no qual se impõe a salvaguarda de um elevado standard de proteção dos direitos fundamentais da criança. De todo o modo, não pode perder-se de vista que os casos apreciados pelo TEDH apresentam diferenças importantes em relação à ponderação que deve ser efetuada pelo Tribunal Constitucional. Aquele Tribunal não procede a um controlo abstrato da compatibilidade de normas jurídicas com certos parâmetros. Diferen- temente, as suas apreciações respeitam, por um lado, a situações concretas que têm, em regra, uma dimensão internacional, respeitando a crianças nascidas no estrangeiro, fruto de gestação de substituição; por outro lado, o juízo de ponderação não incide imediatamente sobre a admissibilidade da gestação de substituição em si mesma, uma vez que se trata de casos referentes a crianças já nascidas, o que implica a ponderação dos direitos destas, enquanto sujeito autónomo. Nesse âmbito, como o próprio Tribunal reconhece, não lhe compete substituir pela sua a apreciação feita pelas autoridades nacionais competentes no que se refere à determinação do «meio mais apropriado para regular a questão – complexa e sensível – da relação entre os pais intencionais e uma criança nascida no estrangeiro com recurso a um acordo comercial de gestação por conta de outrem e a utilização de uma técnica de PMA, nos casos em que tal acordo e a referida técnica sejam proibidos no Estado requerido» [vide § 180 do Acórdão de 24 de janeiro de 2017, Paradiso and Campanelli c. Itália (Queixa n.º 25358/12)]. Importa começar por referir um primeiro grupo de casos decididos pelos Acórdãos de 26 de junho de 2014, Mennesson c. França (Queixa n.º 65192/11) e Labassee c. França (Queixa n.º 65941/11), e de 21 de julho de 2016, Foulon c. França (Queixa n.º 9063/14) e Bouvet c. França (Queixa n.º 10410/14). Em todos eles o TEDH foi chamado a apreciar se o não reconhecimento, em França, da filiação constante de certidões de nascimento emitidas pelas autoridades de um outro Estado relativamente a crianças aí nascidas através do recurso à gestação de substituição constituía uma violação do artigo 8.º da CEDH. Nesses casos, os requerentes – que eram os pais beneficiários do contrato de gestação de substituição, sendo o pai bene- ficiário igualmente o pai biológico – invocaram que a decisão dos tribunais franceses de não reconhecerem a nacionalidade francesa das crianças violava o direito ao respeito da vida familiar e o direito ao respeito da vida privada das crianças, ínsitos no citado artigo da Convenção. OTribunal aceitou que o não reconhecimento da filiação pode efetivamente implicar dificuldades práti- cas na vida familiar dos requerentes e das crianças, na medida em que estas últimas não possuem legalmente a nacionalidade francesa e documentos franceses, mas sim nacionalidade e documentos do Estado em que nasceram. Mas, por outro lado, entendeu também que os obstáculos práticos que as famílias têm de enfren- tar, na sequência da decisão de não reconhecimento da filiação, não são inultrapassáveis, porquanto aquelas se encontram a residir em França com as crianças, não havendo qualquer elemento que indiciasse o risco de serem separadas pelas autoridades francesas. Consequentemente, entendeu que as decisões dos tribu- nais franceses não tinham excedido os limites da margem de apreciação interna dos Estados, tendo aqueles procedido a uma ponderação adequada entre os interesses dos requerentes e os interesses de ordem pública estadual. Decisão distinta foi, porém, proferida relativamente à alegada violação do direito ao respeito da vida privada das crianças. Como o Tribunal começou por notar, tal direito inclui a possibilidade de cada pessoa estabelecer os detalhes da sua identidade como ser humano, o que inclui a relação jurídica de filiação. Ora, neste plano, as crianças encontravam-se numa situação de indefinição jurídica devida à recusa de transcrição do registo: embora os tribunais franceses reconhecessem que existia uma relação de filiação entre os bene- ficiários e as crianças à luz do direito estrangeiro, essa relação não era reconhecida à luz do direito francês. Os juízes entenderam que esta contradição não só colocava em causa a identidade das crianças no seio da
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