TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

88 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Fácil é compreender que vários destes direitos dos menores podem ser gravemente afetados em casos de gestação de substituição, principalmente quando se verificam conflitos entre os ordenamentos jurídicos e soluções específicas consagradas em determinados regimes legais, de natureza permissiva em relação à ges- tação subrogada, são tidas por contrárias à ordem pública noutra ordem jurídica. A Conferência da Haia de Direito Internacional Privado tem-se ocupado deste problema, tendo divulgado em 2014 um estudo sobre parentalidade e questões colocadas pelos acordos internacionais de gestação de substituição (acessível a partir de https://assets.hcch.net/docs/bb90cfd2-a66a-4fe4-a05b-55f33b009cfc.pdf ) , no qual se ensaia o desenho de um instrumento multilateral, que consagre algumas normas com vista a limitar os potenciais conflitos. No plano político, cumpre desde logo recordar a mencionada Resolução do Parlamento Europeu 2015/2229 (INI), de 17 de dezembro de 2015, a que o Presidente da República se referiu no seu veto (cfr. supra o n.º 5). Também no âmbito da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o Comité de Assuntos Sociais, Saúde e Desenvolvimento Sustentável aprovou em 21 de setembro de 2016 um projeto de recomendação afirmando a conveniência de elaborar diretrizes tendentes a salvaguardar os direitos das crianças em conexão com os acordos de gestação de substituição, fundamentado num memorando em que se reconhecia ser con- sensual que a gestação de substituição a título oneroso é lesiva dos superiores interesse da criança e, por isso, deve ser proibida, e, outrossim, a necessidade de os Estados não violarem os direitos das crianças quando tomam medidas para salvaguarda da sua ordem pública e para desincentivar o recurso à gestação de substitui- ção (acessível a partir de http://website-pace.net/documents/19855/2463558/20160921-SurrogacyRights-EN. pdf/a434368b-2530-4ce4-bbc0-0113402749b5 ). Por isso, o memorando preconizava que os Estados Partes proibissem todas as formas de gestação de substituição onerosa, e que colaborassem entre si, no sentido de proteger os direitos das crianças sempre que tomassem medidas para proteger a ordem pública e desencorajar o recurso a este tipo de práticas. Todavia, o projeto de recomendação foi rejeitado por aquela Assembleia, na sua sessão de 11 de outubro de 2016, considerando-se que o mesmo tendia a contemporizar com práticas ilegais e, por isso, a aceitar a admissibilidade de princípio da gestação de substituição. No entanto, também foram rejeitadas as emendas ao projeto, que apontavam no sentido de serem proibidas pelo direito interna- cional todas as formas de gestação de substituição. 11. No plano específico do quadro paramétrico decorrente da CEDH, a questão da gestação de subs- tituição e dos direitos dos envolvidos – beneficiários, gestante e criança – tem sido abordada, em regra, à luz do disposto no artigo 8.º (Direito ao respeito da vida privada e familiar). O TEDH foi já chamado a pronunciar-se num número expressivo de casos, começando a desenhar-se uma jurisprudência firme quanto a diversos aspetos. Desde logo, aquele Tribunal tem traçado uma distinção fundamental entre o direito à vida privada dos beneficiários da gestação de substituição e o direito à vida privada e familiar das crianças assim nascidas. Quanto ao primeiro aspeto, o Tribunal de Estrasburgo tem-se inclinado pela não violação da CEDH, e pelo reconhecimento aos Estados de uma ampla margem de apreciação no estabelecimento de um equilíbrio entre os valores constitucionais em conflito (dignidade da pessoa humana, ordem pública e proteção das potenciais gestantes). Todavia, no que respeita às crianças nascidas através do recurso à gestação de substi- tuição, e à definição e prossecução do seu superior interesse, nos termos da Convenção e das demais normas pertinentes de direito internacional (em particular, a Convenção sobre os Direitos das Crianças), o TEDH tem entendido que o não reconhecimento da filiação e a recusa de atribuição (à criança) da nacionalidade dos pais-beneficiários têm como consequência um dano intolerável para o direito à vida privada, nomeadamente, devido à situação de indefinição jurídica em que as crianças são deixadas, que as impossibilita de estabelecer os detalhes da sua identidade como ser humano. Esta linha jurisprudencial é importante para a análise a levar a cabo no plano jurídico-constitucio- nal interno, já que é diferente a ponderação de bens jurídicos quando se confrontam apenas os interesses

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