TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
85 acórdão n.º 225/18 Desde logo, porque diferentemente deste último, não tem apenas um caráter autorizante, com referência à utilização das técnicas de PMA – vertente que, todavia, não deixa de estar presente, dizendo especialmente respeito ao médico responsável (cfr. o artigo 14.º, n.º 1, da LPMA). O consentimento em análise dirige-se também ao outro lado interessado na gestação de substituição: o dos beneficiários à gestante, no sentido de para esta ser transferido um embrião constituído com recurso a gâmetas de, pelo menos, um deles; e o da gestante aos beneficiários, no sentido de a gravidez resultante da implantação daquele embrião e o posterior parto da criança serem suportados em benefício daqueles. Nesta segunda vertente, o consentimento reveste uma natureza vinculante para quem o emite, obrigando em conformidade. Não obstante, o consentimento dos beneficiários e o da gestante, não só não são simétricos – uma vez que o da gestante implica a aceitação de intervenções continuadas em direitos fundamentais como a integri- dade física ou a saúde e o direito a constituir família e a ter filhos, ao passo que o dos beneficiários se limita à recolha do material genético necessário para a concretização da gestação de substituição e à transferência uterina do embrião assim criado; como, sobretudo, não são consumidos pelo contrato que beneficiários e gestante celebram entre si. É o que se pode concluir da referência expressa e autónoma ao «consentimento das partes» (em paralelo com a menção dos «negócios jurídicos de gestação de substituição», que devem ser celebrados «através de contrato escrito» – n.º 10 do artigo 8.º) contida no já mencionado n.º 8 do artigo 8.º da LPMA, em conjugação com a livre revogabilidade do consentimento garantida nos termos do artigo 14.º, n.º 4, do mesmo diploma. De resto, um dos problemas suscitados pela Lei n.º 25/2016 – e que tem origem em vicissitudes do seu procedimento legislativo – respeita ao modo de estabelecer, do ponto de vista formal, a articulação entre o consentimento de cada uma das partes e o contrato entre elas celebrado. Mas tal problema em nada prejudica a autonomia funcional (traduzida depois em exigências jurídicas próprias) entre a declaração unilateral vinculante correspondente ao consentimento e o acordo de vontades consubstanciado no contrato – questão que será abordada mais à frente. Em especial no que se refere ao consentimento prestado pela gestante, a atividade consentida não se esgota num ato único ou num conjunto de atos pontuais de utilização das técnicas de PMA; o seu consen- timento abrange necessariamente a gravidez – o processo biológico, psicológico e potencialmente afetivo inerente à gestação –, a qual é suportada ou vivida, necessariamente também, no interesse dos beneficiários, e o próprio parto da criança, que é igualmente suportado necessariamente também no interesse daqueles. Ou seja, o consentimento da gestante implica a vontade positiva de que a criança que vier a trazer no seu ventre e que vier a dar à luz não seja tida como sua filha, mas antes como filha dos beneficiários. Daí a assunção da obrigação de entrega a estes últimos – e não a quaisquer terceiros – da criança nascida. É neste contexto que deve entender-se a referência à renúncia «aos poderes e deveres próprios da mater- nidade» feita no segmento final do n.º 1 do artigo 8.º da LPMA, e que se conjuga necessariamente com a previsão do n.º 7 do mesmo artigo: a criança dada à luz pela gestante não é tida como sua filha, mas sim como filha dos beneficiários do contrato de gestação de substituição. Esta consequência jurídica tem como pressuposto a validade e eficácia do consentimento das partes a que se refere o n.º 8 do mesmo artigo 8.º, merecendo especial atenção o consentimento da gestante devido às obrigações por si assumidas no âmbito do acordo de gestação de substituição. Para celebrar validamente tal acordo, a gestante tem necessariamente de querer que a criança trazida no seu ventre durante a gravidez e que depois fará nascer, não seja sua filha, mas antes dos beneficiários. A gestante aceita, por isso, não ser mãe da criança cuja gravidez e parto deverá suportar, sabendo que poderia ser considerada como tal, à semelhança do que sucede com todas as mulheres que dão à luz – incluindo aquelas que só engravidaram na sequência da utilização de uma técnica de PMA heteróloga em que o embrião não seja formado com o seu material genético. É esta escolha da gestante – não ser mãe da criança que vier a dar à luz – que, correspondendo ainda a uma forma de liberdade negativa de constituir família e de ter filhos, pode ser perspetivada, tal como refere a lei, como uma renúncia (antecipada) «aos poderes e deveres próprios da maternidade».
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