TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

75 acórdão n.º 225/18 relativamente ao trabalho ou à família. No que se refere à situação socioeconómica, não é despiciendo referir que os pais beneficiários são normalmente mais velhos, mais ricos e com mais instrução do que as gestantes de subs- tituição, o que igualmente contribui para o risco de coação. Ou seja, mesmo quando as mulheres portadoras não são pagas, a verdade é que podem receber uma compensação, que é, por vezes, tão elevada que se torna impossível recusar. A gestação de substituição é uma atividade em ascensão em muitos países, sendo cada vez mais numerosas as agências que, neste contexto, lucram tanto com o sofrimento dos casais inférteis, como com a vulnerabilidade de muitas mulheres. De facto, cobram-se valores elevadíssimos para selecionar as mães de substituição e, se necessário, os dadores, colocando-se em prática processos de recrutamento altamente intrusivos, onde a coisificação da mulher e da criança são ainda mais evidentes. Ao legalizar a “gestação de substituição”, e tendo em conta os direitos das pessoas envolvidas – pessoas inter- venientes nos processos de PMA e pessoas nascidas na sequência da aplicação das correspondentes técnicas – o legislador nacional não pode desconsiderar as experiências estrangeiras, tal como não pode desconsiderar as poten- ciais complicações sociais, psicológicas e jurídicas, que aumentam exponencialmente tendo desde logo em conta o número de pessoas – seis – que podem, no limite, reclamar direitos de parentalidade: i) a dadora do óvulo; ii) a gestante de substituição; iii) a beneficiária; iv) o dador do espermatozoide; v) o marido da gestante (sujeito sim- plesmente ignorado na presente lei e cujo consentimento é fundamental atendendo à presunção de paternidade); e vi) o beneficiário. Centrando a nossa atenção na gestante de substituição, a mãe biológica, a sua instrumentalização ao serviço de um desejo a ter filhos, é por demais evidente, praticamente desaparecendo enquanto sujeito de direitos. Há pouca investigação relativamente aos efeitos psicológicos de longo prazo da gestação de substituição, pelo que permanece desconhecido como o afastamento emocional e a indiferença afeta a mulher gestante, sendo, con- tudo, de antever enormes dificuldades, à semelhança do que já se sabe em relação à adoção. Há, de facto, com- provação científica suficiente de que esta não fica indiferente ao que lhe acontece quando está grávida, vivendo a gravidez como sua e sofrendo com o abandono da criança, circunstâncias que tornam compreensíveis, e fortemente possíveis, situações como: gestantes que mudam de ideias e querem assumir a maternidade; gestantes que querem abortar; ou gestantes que querem, mais tarde, conhecer ou obter informações sobre a criança. Qualquer uma destas situações coloca em confronto direitos com igual tutela constitucional e nenhuma tem resposta satisfatória na presente lei. Vista a questão do ângulo dos direitos da criança que vai nascer – cuja prevalência deve ser sempre assegurada pela lei – há todo um conjunto de outras questões a que a lei também não dá resposta satisfatória, designadamente: – A importância da ligação (psicológica, biológica/epigenética), que durante a gestação se estabelece entre o feto e a mulher, para o desenvolvimento da criança que vier a nascer; – O impacto que poderá ter sobre a criança a quebra da ligação estabelecida durante a gestação; – A forma como se conseguem garantir os direitos da criança a nascer, considerando o contexto reprodutivo; – A forma como se assegura o superior interesse da criança, em caso (i) de conflito que resulte em quebra de contrato; ( ii) em decisões sobre término da gravidez; ( iii) recusa de entrega da criança; ( iv) recusa de aceitação da criança após o nascimento; ou ( v) morte dos beneficiários prévia ao nascimento. A Constituição, ao basear a República na dignidade da pessoa humana enquanto valor autónomo e específico inerente a todos os seres humanos em virtude da sua simples pessoalidade (cfr. artigo 1.º), assenta-a em dois pres- supostos essenciais, a saber: – Primeiro está a pessoa e só depois a organização politica; – A pessoa é sujeito e não objeto, é fim e não meio de relações jurídico-sociais. Estes princípios aplicam-se tanto à pessoa já nascida como à pessoa desde a sua conceção, aliás, como decorre do disposto no artigo 67.º, n.º 2 alínea e) , da CRP que, ao remeter para dignidade da pessoa humana, pretende não

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