TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
746 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A invocação pelo Acórdão que fez vencimento de que a recorrente colocou, ao tribunal recorrido, uma questão de interpretação de direito infraconstitucional e não uma questão de constitucionalidade, esquece duas coisas: a) É perfeitamente normal que nas alegações a recorrente usasse – porque se dirige a um tribunal comum – argumentos de direito ordinário, nomeadamente, cânones hermenêuticos para justificar uma interpretação extensiva ou uma aplicação analógica da norma. Mas esta argumentação não invalida que, em simultâneo, não tenha suscitado uma questão de constitucionalidade em torno da interpretação normativa que fundamentou a negação do direito ao incidente de diferimento da desocupação. É que uma coisa é o percurso argumentativo usado para chegar a uma determinada interpretação normativa, outra coisa a interpretação normativa em si mesma, sendo só sobre esta que incide o labor do Tribunal Constitucional quando conhece uma questão de constitucionali- dade nos processos de fiscalização concreta. b) O princípio da incognoscibilidade de direito infraconstitucional só se aplica aos passos argumenta- tivos usados para chegar a um determinado resultado interpretativo, não a este resultado interpre- tativo em si mesmo quanto dado fechado. Este, sim, é a interpretação ou a dimensão normativa, que, não obstante ter sido construída com base em argumentos de direito ordinário, vai ser objeto do recurso de constitucionalidade. Ora, o Acórdão que fez vencimento confundiu estas duas fases, prejudicando o direito fundamental ao recurso da recorrente, com base em argumentos de direito ordinário que ela, legitimamente, usa nas alegações de recurso. Por último, decorre da interpretação destas alegações, em conjunto com as respetivas conclusões – meto- dologia aplicada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 214/17 – uma dimensão normativa que veio a ser efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido e impugnada no requerimento de recurso de constitucionalidade: a exclusão dos detentores do imóvel, que se encontrem em situações sociais de carência extrema, do direito ao incidente do diferimento de desocupação previsto no artigo 864.º do CPC. É certo que a recorrente, como se dirigia a um tribunal comum, misturou os argumentos usados para defender a inconstitucionalidade da norma com argumentos de direito ordinário e reportou a enunciação normativa à sua posição jurídica individual, mas isso não invalida que não tenha sido formulada uma inter- pretação normativa, com caráter geral e abstrato, suscetível de aplicação genérica a um número indetermi- nado de sujeitos: ocupantes de imóveis para habitação, sem título de arrendatários. «Por douto despacho proferido em 01.06.2017 constante de fls. dos autos e do qual se apresenta o presente recurso, o Meretíssimo Juiz a quo , julgou o incidente de diferimento de desocupação improcedente, entendendo que a recorrente embora ocupe o imóvel, não tem a qualidade de arrendatária, nem é executada nos autos e, como tal, o por ela impetrado não tem “ jus ”». A recorrente, quer nas alegações, quer nas conclusões, considerou esta interpretação adotada pelo tribu- nal de 1.ª instância, inconstitucional por violação do artigo 65.º da CRP. Esta interpretação normativa é a mesma que veio depois a ser impugnada no requerimento de interposi- ção de recurso: A recorrente não se conforma com a interpretação aí plasmada, segundo a qual o diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, consignada no artigo 864.º, não poderá ser reconhecida a detentores do imóvel relativamente aos quais se verifiquem razões sociais imperiosas. Exigir uma formulação mais abstrata significa, a meu ver, excluir os recorrentes mais vulneráveis do acesso à Justiça Constitucional. Reconhece-se o melindre da questão de constitucionalidade colocada e o seu caráter não consensual em termos jurídicos e ideológicos. Mas, misturar o que se pensa sobre o mérito da questão (a constitucionalidade,
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