TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
74 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ora, o princípio da igualdade e da não discriminação constante do artigo 13.º da CRP não se compadece com tais restrições, e muito menos pode ser aplicado de forma casuística. Pelo que, sem mais considerações porque desnecessárias, consideram os signatários que os referidos artigos da Lei n.º 32/2006 contendem com os ditames do princípio da igualdade, que assim se mostra ofendido. E isto para já não falar da incoerência do ordenamento jurídico português na matéria – além da violação fla- grante do princípio da igualdade –, não se percebe por que razão se permite aos adotados conhecer as suas origens e aos nascidos por recurso a técnicas de PMA não. Não há uma razão atendível que o justifique e adensa-se a dis- criminação a que são votadas as pessoas que nasçam por recurso a técnicas de PMA. Violação do primado da dignidade da pessoa humana e do dever estadual de proteção da infância A evolução das ciências e da biotecnologia, nas últimas décadas, tem sido exponencial, trazendo consigo enor- mes impactos sobre a sociedade e, em particular, a instituição da família. Assistimos, pois, a mudanças profundas cujas potencialidades colocam o direito perante o difícil desafio da ponderação e imposição de limites em nome não apenas de uma noção de ordem, mas também de humanidade. Num mundo profundamente individualista, no contexto do qual facilmente se reconhece uma conceção cada vez mais utilitária e hedonista do ser humano diante da ciência e da medicina, é fundamental lembrar que a evo- lução científica não decorre de um mero interesse individual e egoísta, mas sim, de um interesse público dirigido a criar melhores condições para toda humanidade. Não se procura com isto refrear os avanços alcançados, os quais também são conquistas da humanidade, mas simplesmente garantir que o ímpeto da descoberta e do ultrapassar das barreiras não se divorcia de uma concreta ponderação de valores que, na sua dimensão individual e coletiva, constituem a essência do ser humano. O contrato através do qual a mulher se dispõe a suportar uma gravidez por conta de outrem, e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e direitos próprios da maternidade, não existia na ordem jurídica portuguesa até à entrada em vigor da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto. A gestação de substituição é um método de procriação que oscila, nos vários ordenamentos jurídicos, entre a proibição absoluta e a permissão sem restrições. Entre nós, atualmente, o modelo resultante da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, é o equivalente a uma posição intermédia: é admitida, em termos excecionais, com base na com- provação de razões clínicas e de saúde. Uma das críticas recorrentes à gestação de substituição é a de que estamos perante uma verdadeira mercantili- zação do ser humano: a criança passa a ser objeto de um negócio jurídico e a mãe gestante converte-se numa mera incubadora ao serviço dos beneficiários. Um processo de coisificação que, independentemente da natureza onerosa ou gratuita do mesmo, traz indubitavelmente à colação o princípio da dignidade da pessoa humana, seja no que refere à gestante de substituição, seja no que se refere à criança. Reconhecemos que, num mundo – e país – onde os casos de infertilidade aumentam, a maternidade de subs- tituição é apresentada como mais um método de procriação medicamente assistida, dirigido a tratamentos de infertilidade e que, nesta excecionalidade, visa, no limite, permitir que os beneficiários realizem o projeto de ter filhos e a gestante de substituição satisfaça um louvável espírito altruísta e de solidariedade. Todavia, a realidade é, na grande maioria das vezes outra. É um facto conhecido que a maior parte das «barrigas de aluguer» – expressão comummente usada e cujo sen- tido pejorativo reflete a inadmissível e infeliz realidade mundial subjacente – se encontram nos países mais pobres, onde o aluguer do ventre constitui mais uma forma de subsistência da mulher e da sua família. Por seu lado, nos antípodas dessas geografias, empresas sedeadas em países ricos e desenvolvidos asseguram, mediante o pagamento de elevadas quantias, a supervisão rigorosa das condições de alimentação e saúde das gestantes, e até a eventualidade de realização de aborto quando não houver satisfação com o produto final. A única ética que se respeita é a ética do mercado. E mesmo naqueles países onde os negócios onerosos de gestação de substituição são proibidos, as mulheres podem ser coagidas a aceitar, nomeadamente através de pressões emocionais, ou mesmo de ameaças ou promessas
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