TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

60 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL XXXII – Embora também os beneficiários possam querer afastar-se, por razões supervenientes, do seu pró- prio projeto parental, a assimetria das obrigações assumidas pelos beneficiários e pela gestante no âmbito da gestação de substituição, bem como a circunstância de nenhuma mulher poder ser obrigada a realizar uma interrupção voluntária da gravidez contra a sua vontade, ainda que se encontrem reunidos os pressupostos legais para o efeito, tem como consequência que, depois da transferência uterina, isto é, da implantação do embrião no útero da gestante, os primeiros já não possam voltar atrás nem exigir à gestante que o faça, mesmo no caso desta não querer assumir um projeto parental próprio relativamente ao nascituro que traga no seu ventre, havendo ainda a considerar a possibilidade de as partes quererem revogar por acordo o contrato de gestação de substituição, já depois de realizada a transferência uterina, sendo que a única diferença consiste em tal revogação ocorrer numa situação em que não existe qualquer conflito com a vontade dos beneficiários. XXXIII – No que se refere ao afastamento da gestante relativamente ao projeto parental dos beneficiários em virtude de não querer levar a gravidez até ao fim, as referências às disposições sobre interrupções voluntárias da gravidez (IVG) contidas no artigo 8.º, n.º 10, da LPMA não permitem assegurar que em todas as circunstâncias que, de acordo com a lei vigente, excluem a ilicitude da IVG reali- zada por escolha da mulher grávida, a gestante também o possa fazer, sozinha e sem penalizações, num estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido; deste modo, a limitação à revogabilidade do seu consentimento estatuída no artigo 14.º, n.º 4, da mesma Lei, aplicável por força das remissões constantes dos seus artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, abre espaço para uma inter- venção condicionadora dos beneficiários neste domínio; no quadro da gestação de substituição, a opção de realizar uma IVG, nos casos e nos termos em que a lei geral a admite, corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, mas essa opção, devido à impossibilidade de revogação do consentimento, não se encontra salvaguar- dada em toda a sua amplitude. XXXIV – Tal limite à revogação do consentimento, não se revelando inadequado nem desnecessário à pro- teção do projeto parental dos beneficiários e dos seus interesses e expectativas, apresenta-se, toda- via, excessivo, pelo sacrifício que impõe a um direito fundamental da gestante de substituição que, no exercício da sua autonomia pessoal, aceita participar no projeto parental dos beneficiários, viabilizando-o; o projeto parental em causa não assenta exclusivamente no desejo de parentalidade dos beneficiários mas também na vontade da gestante de que os mesmos sejam pais da criança que esta vier a dar à luz; os beneficiários e a gestante de substituição não podem, assim, deixar de estar cientes de que o caráter voluntário das obrigações características do contrato de gestação de substituição é essencial ao respetivo cumprimento. XXXV – Por força das características próprias da gravidez, enquanto fenómeno biológico, psicológico e potencialmente afetivo com caráter dinâmico e imprevisível quanto a diversas vicissitudes, não se pode ter como certo que a vontade inicialmente manifestada pela gestante seja totalmente escla- recida e insuscetível de sofrer modificações em virtude de desenvolvimentos não previstos ocor- ridos durante o próprio processo gestacional; consequentemente, as obrigações contratualmente assumidas e consentidas  a priori, podem a partir de um dado momento deixar de corresponder à vontade da gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento deixe de traduzir uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação, deixando o consentimento inicial de ser atual, por razões atendíveis.

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