TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
54 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL deixar de ser próprio dos beneficiários, é também partilhado pela gestante: os beneficiários e a gestante querem todos que os primeiros tenham uma criança que seja sua filha, não obstante ter sido dada à luz pela segunda, sendo com base nesta convergência de vontades – rectius : é reconhecendo a sobredita convergência de vontades no pressuposto de a mesma ser válida e eficaz – que a lei prevê um regime especial de estabelecimento da filiação que afasta a regra geral do Código Civil. X – O legislador preocupou-se em estabelecer condições mínimas que assegurem o requisito positivo da gratuitidade da gestação de substituição: proíbe pagamentos e doações à gestante, excetuadas as com- pensações de despesas efetivamente incorridas e exige que as partes do contrato de gestação de substi- tuição não tenham entre si vínculos de subordinação económica; a gratuitidade da gestação de subs- tituição consagrada no ordenamento português é um dos seus traços essenciais e o legislador adotou medidas efetivas tendentes a garanti-la minimamente, pelo que tal característica tem de ser relevada na análise da admissibilidade constitucional da figura, não procedendo o argumento invocado quanto à exploração económica da gestante. XI – Embora a gravidez, implique vulnerabilidade e exija cuidados especiais, não corresponde a uma inca- pacidade, pois a mulher grávida, no essencial, continua tão livre e autodeterminada nos planos intelec- tual e físico (incluindo neste a dimensão sexual) como antes, sendo manifestamente exagerado consi- derar-se que a gestação de substituição implica uma subordinação da gestante em todas as dimensões da sua vida ao interesse dos beneficiários; o compromisso que esta assume perante os beneficiários limita-se à observância dos cuidados normais numa qualquer gravidez, em ordem a poder cumprir, após o nascimento, a obrigação de entrega da criança; daí a proibição de imposição contratual de «restrições de comportamentos à gestante de substituição» ou de «normas que atentem contra os seus direitos, liberdades e garantias» estatuída no artigo 8.º, n.º 11, da LPMA. XII – Relativamente à questão da instrumentalização da gestante, não pode abstrair-se da causa-função do contrato de gestação de substituição, nem das próprias motivações e condições em que a gestante o celebra; a gestação de substituição, tal como prevista no artigo 8.º, n. os 2 a 6, da LPMA, visa criar condições para que os beneficiários, confrontados com a impossibilidade de procriar – podendo tal impossibilidade ser absoluta ou relativa – devido à falta de condições para suportar uma gravidez, possam, ainda assim, tentar fazê-lo com a colaboração voluntária de uma terceira pessoa; devido à exigência da presença de gâmetas de pelo menos um dos beneficiários exigida pelo artigo 8.º, n.º 3, da LPMA, a gestação de substituição só é admissível como modo subsidiário de (tentar) assegurar a reprodução dos beneficiários, isto é, que os mesmos consigam ter um filho que, pelo menos em parte, seja da sua descendência biológica. XIII – A gestação de substituição tem, por isso, uma relevância constitucional positiva, enquanto modo de realização de interesses jurídicos fundamentais dos beneficiários, que, por razões de saúde, ficaram prejudicados, estando em causa, nomeadamente, o direito de constituir família e o direito de procriar; acresce que, perspetivada a impossibilidade de engravidar nos casos previstos no n.º 2 do artigo 8.º da LPMA à luz de um conceito social de deficiência, a gestação de substituição também pode constituir um importante fator de integração social; nada disto implica a aceitação de um direito fundamental à procriação por via da gestação de substituição, entendendo-se, mais modestamente, que a permis- são a título excecional da gestação de substituição, nos termos do artigo 8.º da LPMA corresponde a uma opção do legislador que, além de não ser arbitrária, favorece bens constitucionalmente protegidos e, como tal, não deve ser afastada sem razões fortes.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=